quinta-feira, 27 de setembro de 2007

O Capacete Dourado

“Jota não tem interior, Margarida não tem exterior. Apesar disso, ou por isso mesmo, eles encontram-se. O que poderão fazer? Apenas seguir em frente, mesmo que tudo esteja contra eles. O amor é para ser vivido.”

Falar de cinema português não se revela, de todo, uma tarefa fácil. Ou antes, revelar-se-à ardilosa. Primeiro reflectimos na questão sobre o que é o cinema português, se este terá uma identidade própria, correntes, conflitos, gerações. Vamos sendo, lentamente, obrigados a dizer que sim. Ainda que tudo pareça demasiado ocasional. Ainda que se perceba claramente que não há nada que se pareça com uma máquina engrenada que sustente, e permita, que tal aconteça. Depois perguntamo-nos se há bom cinema português. E por muito que algo em nós diga o contrário, quer o destino, essa coisa tão portuguesa, que, de tempos a tempos, sejamos obrigados a dizer o contrário.

Supondo que tínhamos já ultrapassado tudo isto, o que no fundo não sucede, há ainda esta velha questiúncula entre o cinema português e o seu próprio público. Provavelmente caso isolado no mundo, há tendencialmente um cinema português com mais mercado de exportação que propriamente espectadores caseiros. O que sobra em aclamação e galardões, falta recorrentemente no número de fieis que afluem às salas. De pretensioso a demasiado estético, de parado a morto, de tudo o cinema português é, com frequência, apontado a dedo pelos que mais fortemente o deveriam apoiar. Não raras vezes com justiça, reconheça-se. O Capacete Dourado é óptimo cartão de visita para uma reviravolta.

Primeiro ponto: O Capacete Dourado é um filme português. Não somente pelo que o óbvio da ficha técnica constata, mas essencialmente porque é um filme que está longe de fugir desse epíteto. Pelo contrário, homenageia-o. Ou não fosse Cramez, acima de tudo, um cinéfilo. E assim, na sua primeira longa-metragem, depois de anos de aprendizagem com os mestres, opera uma obra de súmula, mais do que de clivagem. Há um confluir de influências e referências, e, porque não, de reverências. Vamos vendo surgir, sobre a forma de memória ou aparição descarada, Kubrik, Joaquim Leitão, Fernando Lopes ou James Dean dos tempos de Nicholas Ray.

Segundo Ponto: O Capacete Dourado é um filme sobre Portugal. E também aqui se revela português, na forma como percebe e desvenda uma fatia importante do Portugal contemporâneo: o Portugal interior, ainda fortemente enraizado nos conceitos de um tempo que apenas aí sobrevive. Há na austeridade sóbria de Rogério Samora, o pai de Margarida (Ana Moreira), um sério caso de como expôr a mentalidade portuguesa mais conservadora. A velha ideia de família, de classes sociais, que num meio mais urbano se esbate cada vez mais, mas nos pequenos ciclos ainda sobrevive. Tal como, na vivência de J e dos amigos, está presente o sufocante desespero de uma vida sem futuro, sem perspectivas, sem saída. Como, ainda, no pai de J se percebe a ciclicidade da vida e o desinteresse pelo ensino como porta de fuga. Tudo isto está presente e tudo isto faz de O Capacete Dourado um retrato fotográfico da vida das pequenas cidades, na saga de O Vale Abraão de Oliveira.

Por último, encontramos ainda aquilo que de melhor sempre tivemos. Os actores. Ana Moreira, desde Transe tornada oficial como a melhor actriz em Portugal, continua a ostentar o título à espera de alguém à altura. Eduardo Frazão transforma-se no James Dean português neste papel de J. E é do contraste, bem conseguido, dos dois, que nasce a força da sua estranha história de amor, que não é mais que o leit-motif do filme. A tudo isto acrescente um extraordinário Rogério Samora, um convincente Alexandre Pinto e uma realidade, dura e crua, que se manifesta nos adereços, nos diálogos ou na cenografia. E acrescente, obviamente, poesia. Ou não se tratasse de um filme português.

Título: O Capacete Dourado
Realizador: Jorge Cramez
Elenco: Eduardo Frazão, Ana Moreira, Rogério Samora, Henrique Martins e Alexandre Pinto. Portugal, 2007.

Nota: 8/10

1 comentário:

B. disse...

Um dos mais conceituados realizadores Portugueses para mim, e um dos mais profundos conhecedores da arte em si, e de toda a literatura que alguma vez fez parte do raciocínio cinematográfico, disse sobre esse filme, que não acreditava no que estava a ver.

Disse que é do menos competente que havia, e que se isto era a nova geração do cinema em Portugal, que ele desistia de cinema.

Achei cómico, principalmente a forma como ele diz as coisas, sempre com muita classe, mas sempre muito bruto e seco.

Gosto quase sempre da opinião dele.

Depois da tua análise e gosto pelo filme, fico ainda mais curioso em ir vê-lo, por outro colega meu também ter gostado, mas ver-se um pouco só nesse caminho.

Quando o fizer volto a comentar, para já achei engraçado mencionar a crítica que ainda hoje ouvi dele sobre o filme.