quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A Turma


Ao contrário do que parece, é difícil perceber de que fala A Turma. Fala da escola, obviamente. Fala de tudo aquilo que, positivamente, lhe acusam. Fala de multiculturalismo, de integração étnica, de conflitos sociais e de ensino. Essa é a parte óbvia do filme, mas que nem por isso é menos boa. Mas A Turma fala-nos de mais - não chega a falar, talvez apenas mencione, nós é que ficamos a pensar naquilo. A Turma fala-nos de uma sociedade, a escola, onde revemos os erros, as características e os vícios de todas as outras. Numa certa medida, ser uma escola é o que menos importa. Importa ver o que nos mostram, a forma como a burocracia funciona, como os pares se protegem, como a sociedade purga e se desresponsabiliza desde que tudo siga a direito, a forma como a convivência diária é um terreno lamacento. Por outro lado, ser uma escola é uma opção irónica. Vermos como tudo o que acontece é, numa escala maior, um retrato fidelíssimo de uma sociedade moderna, faz-nos pensar no papel da escola, dos professores e da educação. Educação técnica, obviamente. Mas o que aprendemos na escola para que possamos mudar os erros que hoje fazemos? Aquela é a escola de hoje, cópia de um passado social recente e amostra de um futuro próximo. É irónico mas verdadeiro. A Turma é o retrato mais fiel da sociedade ocidental que o cinema fez nos últimos anos.
Apesar de tudo isto, muito pouco ou quase nada tem de metafórico. Não é uma lição moral nem uma reflexão que alguém julgou necessário impingir-nos. É um retrato, tão só. Um vagabundo algures entre o documentário e o cinema de ficção. Esta indecisão constante entre estes dois géneros - que quer o filme, quer a sua história acentuam - faz de A Turma um filme de uma execução com tanto de belo como de real. A realidade é crua, é incerta, é hesitante. O filme de Laurent Cantet reforça tudo isso, dá espaço a que as pessoas que habitam as personagens se expressem. Não há heroís, nem vilões, os bons erram e os maus também sabem agir bem. Não é a primeira vez que se utiliza esta técnica de actor em cinema - pegar em pessoas reais e pô-las a interpretar os seus próprios papeís -, mas até aí o filme volta a vacilar entre o documental e o cinema ficcional, o que faz com que aqueles miudos não se percam em rodriguinhos à volta de serem eles próprios. São naturais, mas sabem o que estão a fazer, têm uma visão de conjunto. A realização de Cantet mais não faz do que libertar todos eles, numa opção quase democrática, como se não houvesse ninguém com mais importância.
Uma questão importante, a democracia. Não houve consenso sobre o tema ao longos dos últimos milénios, também não esperávamos que o encontrassem numa escola francesa. A posição de François como professor de francês é a de alguém que vive entre o que acha correcto e o que é necessário. É correcto salvaguardar a sua posição face aos seus alunos, mas é necessário punir os que o merecem. Ser correcto nem sempre é fácil, e o que é necessário é-nos muitas vezes imposto por um sistema de base que, na maioria do tempo, nem nos apercebemos que ali se encontra. Mas, com a mesma rapidez e intensidade com que surge uma ovelha negra, a sua purga é esquecida. A Turma tem ainda um lado humano, provavelmente derivado do seu lado realista. Quase nunca tenta ser dramático, mas, como a dada altura é pedido pelo professor, todos se expõem. E é esta exposição, a que como voyeurs assistimos, que nos comove e agarra àqueles casos específicos, que sobrevivem assim aos estereótipos que já antes eram - os magrebinos, os lusodescendentes, os africanos, os marroquinos, os rappers, os góticos. Mesmo o professor é humano, com os seus erros, a sua boa vontade e a sua resignação. Sem happy-endings. Tudo isto ocorre porque A Turma está construída como uma armadilha. Primeiro seduz-nos, cativa-nos, faz-nos rir, sorrir e identificar-mo-nos. Quando já nos tem, de forma manipuladora, comove-nos.
Para além de tudo isto, A Turma é mesmo só uma turma. Igual à minha. E à do colega do lado. Todos demorámos tempo a entrar na aula para queimar tempo. Todos tivemos um colega insolente, se não o fomos. Todos formámos grupos e excluímos alguém. Todos tivemos medo de nos expormos e criámos personagens à nossa volta. É isso que faz aquele plano final tão belo. Uma turma por vezes é mesmo só uma turma. A Turma é todo este cinema feito naturalmente. O lado necessário do cinema, com as suas preocupações sociais. O lado documental, com a necessidade de retratar. O lado ficcional, com o objectivo de contar a história de pessoas. O que nos diz A Turma, em que pensamos ou no que reflectimos é algo de profundamente subjetivo mas eficaz. Mas, e esta é a beleza despreocupada de A Turma, se não nos disser nada, ninguém fica chateado.
Título: A Turma
Realizad: Laurent Cantet
Elenco: François Bégaudeau, Esmeralda Ouertani e Rachel Régulier
França, 2008.
Nota: 9/10

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