quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Tetro


A carreira de Francis Ford Coppola é, para além de intensamente estudada, especialmente interessante. A capacidade de, dez anos passados sobre o seu último filme, voltar em 2007 com Uma Segunda Juventude já atestava o amor pelo risco. Uma Segunda Juventude não seria o seu melhor filme - e quão difícil seria avaliar o seu melhor filme - mas era uma filme arrojado cuja principal característica era ambicionar demais. E, não contente, em 2009 aterra-nos em cima Tetro, uma obra completamente deslocada do que é o cinema hoje - e até do que é o cinema de Coppola. Em comum com Uma Segunda Juventude, acima de tudo, a ambição de conter em si o mais possível. O cinema enquanto vida como nunca. Em Tetro cabe tudo e há espaço para tudo. Espaço para a família, para o ciúme, para a memória, para o sonho, para a realidade, para a música, para o cinema, para a literatura, para o teatro, para a cor. Espantosa a construção narrativa que consegue conter tudo isto numa única história, a história de uma só família - e não é que não é a primeira vez que ele faz isto?: Um filme, uma família.
É claro que há alturas em que o onirismo perde o controlo - e aí se criam as excentricidades de algumas personagens - e momentos em que a narrativa não consegue ter pulso sobre tanta vida a jorrar de dentro de si - e assim se perde momentaneamente. Mas o resultado final não só é consistente, sem sequer nunca procurar isso, como é, acima de tudo belo. É beleza pura cada momento conseguido de Tetro. Como no amor pelo teatro - um café-teatro amador, puro e casto, onde tudo é caseiro e honesto - ou a obsessão pela literatura. Uma literatura que primeiro é vista como doença, como consumidora, como enlouquecedora, cruel e vil, mas que ao longo do filme se transforma numa literatura salvadora, redentora, onde se podem expurgar os males e encontrar soluções, aproximando pessoas e revelando segredos. E há o cinema, pano de fundo de tudo isto, quer no que Coppola sonha, quer no que as suas personagens sonham, quer no que Cappola nos influencia ou quer no que influencia Coppola.
Tudo isto se constrói num enovelamento simples mas denso onde se misturam memórias, sonhos, passado e presente - um pouco a lembrar por vezes a busca incessante de Proust pela memória mas com um toque de estranheza que só Borges saberia dar. O jogo de cor e luz é exemplificativo da arte do engenho, mas é o onirismo do conteúdo de alguns sonhos e de algumas memórias que mais impressionam num realizador que já não tem nada a provar mas que, ainda assim, se expõe, se entrega e se arrisca por pura paixão despudorada. Mesmo que tudo isto falhasse, e não falha, esta imagem de um Coppola aventureiro quando não precisava é belíssima. E assim temos uma viagem à Patagónia quase em género de Route 66, um festival de teatro onde se arrasam os críticos e as suas superficialidades pseudo-intelectualizadas, um par de irmãos que afinal o não são, ou um escritor que escreve em cifra e ao contrário. O melhor de tudo é chegar ao fim e não saber sobre o que é o filme. Se sobre uma família torturada por uma figura paternal austera e má, se sobre um triângulo de personagens que se descobrem e resolvem ou se sobre os sentimentos mais básicos que temos - ciúme, amor e ódio. Muito certamente é sobre cinema.
Título: Tetro
Realizador: Francis Ford Coppola
Elenco: Vincent Gallo, Maribel Verdú e Alden Ehrenreich.
E.U.A., Itália, Espanha e Argentina, 2009.
Nota: 8/10

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