
Consumimos tanto cinema, tanta quantidade de cinema, que por vezes nem nos apercebemos dos riscos que isso pode trazer. Quanto tempo até que um filme verdadeiramente mude a minha percepção do mundo que me rodeia? Quantos filmes, ou quantas horas, até que um deles aja sobre nós, altere a forma como vemos o cinema? Porque o cinema não é, e não pode ser, apenas uma sequência – e uma consequência – de uma sociedade televisiva, consumidora e burguesa, interessada apenas no entretenimento fugaz e fútil, rápido, descontraído e descomprometido com tudo e todos. Haverá Sangue, o novo filme de Paul Thomas Anderson, nomeado para melhor filme e vencedor do Óscar de Melhor Actor Principal, é um daqueles cada vez mais raros momentos em que percebemos que ainda há em Hollywood uma arte chamada Cinema. Haverá Sangue é a prova de que ainda é possível fazer cinema como forma de explicar as pessoas, de explicar o mundo, de o dar a entender. Em Haverá Sangue faz-se o mais difícil, explica-se todo um país. O mais poderoso do mundo. A América cabe toda num filme.
Seguimos os passos de Daniel Plainview, desde os tempos de explorador do grande oeste americano até à sua mansão milionária, ao longo de cerca de 30 anos, no inicio do século XX. Seguimos os passos matreiros e ambiciosos de Plainview que é o sonho americano feito pessoa. A dor e o suor com que se arrasta do fundo de um poço, nas primeiras cenas do filme, são a imagem de um homem, que é no fundo um país, que acredita em grandes lutas, em esforço e em recompensa. O mesmo homem (ou diremos o mesmo país?) que vemos nos últimos planos, indefectível do papel da família mas deixado sozinho pelo filho. O homem (agora, em vez de país, chamamos-lhe o sonho americano) que conseguiu vingar, à custa de tudo e de todos, e que acaba o filme rodeado de luxos em tempos de crise mas rodeado também de sangue e com a frase profética e metafórica “Estou acabado”.
Seguimos Daniel Plainview até que este se cruze com Eli Sunday, o pastor da Igreja da Terceira Revelação. Eli Sunday, o profeta. Eli Sunday, o crente. Eli Sunday, o falso profeta em busca de fundos para a sua igreja. Eli Sunday, o pastor que exorciza tudo e todos em nome da religião que anuncia. Eli Sunday, a outra metade de um país que veio ter consigo em busca de petróleo. Quando Sunday e Plainview se encontram, quando a religião e ambição se fundem, quandos dois obstinados com destinos e caminhos opostos se encontram, descobre-se a América do filme de Thomas Anderson. Descobre-se o filme, explica-se a América de hoje, a América de então e a América desde então. Sunday é o pior que a religião trouxe à América e que a América soube extorquir como ninguém, sedenta de falsos profetas, de expiações religiosas e de leit-motifs para as suas ambições.
Seguimos Daniel Plainview, também, porque é Daniel Day-Lewis quem nos conduz. Este inglês nascido em berço de ouro mas educado nos moldes sociais que a mentalidade esquerdista do pai exigia, que surge hoje, isento da necessidade de consagração. Consagração como actor, para Daniel Day-Lewis, surgiu com A Idade da Inocência ou Em Nome do Pai. Para este actor, um dos últimos sérios sobreviventes do método de representar que Stanislavksi ensinou, Haverá Sangue é a oportunidade de fazer história no cinema e de ser o corpo de um país, do qual o filme é a representação digerida e entendida. Nada surge ao acaso. Nem no filme de Anderson, nem no corpo ou voz de Lewis.
Há, em Haverá Sangue, o melhor e o pior da América. Há ambição e sonho, família e a ausência dela, traição e vingança. Há bíblia, demasiada bíblia e petróleo, demasiado petróleo. E há sangue. Quando a religião e o petróleo caminham juntos, num filme que é a própria América, só poderia haver sangue.
Título: Haverá Sangue
Realizador: Paul Thomas Anderson
Elenco: Daniel Day-Lewis, Dillon Freasier, Paulo Dano, Ciarán Hinds e Kevin J. O’Connor
E.U.A., 2007.
Nota: 9/10
2 comentários:
Talvez o melhor filme da década.
Direcção de actores exuberante (como já vimos no Magnolia). Day Lewis é um assombro, agarra-nos à cadeira. Superou o seu "My Left Foot" tendo aqui, para mim, a sua maior interpretção de sempre.
Uma realização apenas superada pelos Cohen no "No Country for Old Men".
A sequência final do filme, é arrebatadora, e crua crua crua...Este é daqueles casos raros como dizes, saímos do cinema de barriga cheia, sem sequer falar do dinheiro do bilhete ou do cartão de cinema.
Brutal.
Que falta para ter 10?
Ver o filme mais vezes e deixar passar algum tempo...
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