domingo, 2 de março de 2008

Haverá Sangue


Consumimos tanto cinema, tanta quantidade de cinema, que por vezes nem nos apercebemos dos riscos que isso pode trazer. Quanto tempo até que um filme verdadeiramente mude a minha percepção do mundo que me rodeia? Quantos filmes, ou quantas horas, até que um deles aja sobre nós, altere a forma como vemos o cinema? Porque o cinema não é, e não pode ser, apenas uma sequência – e uma consequência – de uma sociedade televisiva, consumidora e burguesa, interessada apenas no entretenimento fugaz e fútil, rápido, descontraído e descomprometido com tudo e todos. Haverá Sangue, o novo filme de Paul Thomas Anderson, nomeado para melhor filme e vencedor do Óscar de Melhor Actor Principal, é um daqueles cada vez mais raros momentos em que percebemos que ainda há em Hollywood uma arte chamada Cinema. Haverá Sangue é a prova de que ainda é possível fazer cinema como forma de explicar as pessoas, de explicar o mundo, de o dar a entender. Em Haverá Sangue faz-se o mais difícil, explica-se todo um país. O mais poderoso do mundo. A América cabe toda num filme.

Seguimos os passos de Daniel Plainview, desde os tempos de explorador do grande oeste americano até à sua mansão milionária, ao longo de cerca de 30 anos, no inicio do século XX. Seguimos os passos matreiros e ambiciosos de Plainview que é o sonho americano feito pessoa. A dor e o suor com que se arrasta do fundo de um poço, nas primeiras cenas do filme, são a imagem de um homem, que é no fundo um país, que acredita em grandes lutas, em esforço e em recompensa. O mesmo homem (ou diremos o mesmo país?) que vemos nos últimos planos, indefectível do papel da família mas deixado sozinho pelo filho. O homem (agora, em vez de país, chamamos-lhe o sonho americano) que conseguiu vingar, à custa de tudo e de todos, e que acaba o filme rodeado de luxos em tempos de crise mas rodeado também de sangue e com a frase profética e metafórica “Estou acabado”.

Seguimos Daniel Plainview até que este se cruze com Eli Sunday, o pastor da Igreja da Terceira Revelação. Eli Sunday, o profeta. Eli Sunday, o crente. Eli Sunday, o falso profeta em busca de fundos para a sua igreja. Eli Sunday, o pastor que exorciza tudo e todos em nome da religião que anuncia. Eli Sunday, a outra metade de um país que veio ter consigo em busca de petróleo. Quando Sunday e Plainview se encontram, quando a religião e ambição se fundem, quandos dois obstinados com destinos e caminhos opostos se encontram, descobre-se a América do filme de Thomas Anderson. Descobre-se o filme, explica-se a América de hoje, a América de então e a América desde então. Sunday é o pior que a religião trouxe à América e que a América soube extorquir como ninguém, sedenta de falsos profetas, de expiações religiosas e de leit-motifs para as suas ambições.

Seguimos Daniel Plainview, também, porque é Daniel Day-Lewis quem nos conduz. Este inglês nascido em berço de ouro mas educado nos moldes sociais que a mentalidade esquerdista do pai exigia, que surge hoje, isento da necessidade de consagração. Consagração como actor, para Daniel Day-Lewis, surgiu com A Idade da Inocência ou Em Nome do Pai. Para este actor, um dos últimos sérios sobreviventes do método de representar que Stanislavksi ensinou, Haverá Sangue é a oportunidade de fazer história no cinema e de ser o corpo de um país, do qual o filme é a representação digerida e entendida. Nada surge ao acaso. Nem no filme de Anderson, nem no corpo ou voz de Lewis.

Há, em Haverá Sangue, o melhor e o pior da América. Há ambição e sonho, família e a ausência dela, traição e vingança. Há bíblia, demasiada bíblia e petróleo, demasiado petróleo. E há sangue. Quando a religião e o petróleo caminham juntos, num filme que é a própria América, só poderia haver sangue.

Título: Haverá Sangue
Realizador: Paul Thomas Anderson
Elenco: Daniel Day-Lewis, Dillon Freasier, Paulo Dano, Ciarán Hinds e Kevin J. O’Connor
E.U.A., 2007.

Nota: 9/10

2 comentários:

B. disse...

Talvez o melhor filme da década.

Direcção de actores exuberante (como já vimos no Magnolia). Day Lewis é um assombro, agarra-nos à cadeira. Superou o seu "My Left Foot" tendo aqui, para mim, a sua maior interpretção de sempre.

Uma realização apenas superada pelos Cohen no "No Country for Old Men".

A sequência final do filme, é arrebatadora, e crua crua crua...Este é daqueles casos raros como dizes, saímos do cinema de barriga cheia, sem sequer falar do dinheiro do bilhete ou do cartão de cinema.

Brutal.

Que falta para ter 10?

Gustavo Jesus disse...

Ver o filme mais vezes e deixar passar algum tempo...