domingo, 24 de janeiro de 2010

Um Profeta


Algures a meio caminho entre o filme de máfia e o filme prisional, Um Profeta, de Jacques Audiard, consegue, apesar do estereótipo, estar para além do filme de género que essas duas condições impôem. Não é por fugir deles. Enquanto retrato prisional, Um Profeta é fiel, duro e cruel, como se lhe pede. A primeira meia hora é de digestão demorada. Mas, graças a Audiard, a violência que nos é transmitida, não é a dos filmes americanos onde se viola, agride e espanca graficamente. Isso também lá está, mas a principal violência é a que não se vê, a que se vive sozinho na cela. A violência da antecipação, da espera, da incerteza. Essa é a violência que Audiard filme e com que nos apresenta ao seu registo de filme de prisão, até entrarmos no modo "as coisas estão a correr bem" de quem percebe o funcionamento interno da prisão e que Audiard faz seguir em modo fluido e animado.
Mas há também Um Profeta, o filme de máfia. E aqui Audiard é de novo, antes de mais nada, inteligente. Não é inovador - até porque dificilmente alguém dirá alguma coisa nova sobre a máfia que os últimos 20 anos de audiovisual não tenham explorado - nem é excessivamente académico na forma como aborda a máfia, dentro e fora da prisão. Foca-se, e foca-nos, naquilo que realmente lhe interessa, nos conflitos étnicos e raciais. Porque, no fundo, parece dizer-nos Audiard, a violência prisional e a violência da máfia, a vivência de cada uma delas, não é muito dispar. O que há de novo em Um Profeta é esta consideração do que é a multiplicidade étnica na violência. De como o mundo se adaptou ao que a sociedade pós-terrorismo global instaurou como estabelecido. Ou, talvez, de como o mundo sempre foi assim. De um lado os muçulmanos, do outro os corsos, do outro os africanos. E esta, queiramos quer não, é a era dos muçulmanos.
E tinhamos tudo para ter um filme profundamente realista. Na temática, no género, na realidade social. Até no tipo de heroí. Ambíguo, moralmente dúbio, esforçado, lutador e ligeiramente estereotipado. Mas, e isto é o melhor do filme de Audiard, Um Profeta é ao mesmo tempo um filme de grande poesia e com pormenores de cinema que a parte social em si muitas vezes esquece. Sem abdicar do realismo, sem abdicar da dureza, Audiard oferece-nos ao mesmo tempo um fantasma que ensombra a personagem principal - bonita personificação da metáfora que tantas vezes se usa - ou uma capacidade profética inexplorada por Audiard mas que não nos transtorna, apenas nos encanta. Nada está a mais no filme de Audiard. Nem se diz a mais - deixando-se ao expectador a capacidade de pensar - nem se diz a menos - e se cai no vazio dos planos sem sentido. Um Profeta é um filme de quem sabe o que está a fazer, melhor, de quem sabe o que quer fazer e, melhor ainda, de quem não nos quer impor nada senão a realidade, onde dificilmente há bons ou maus. A espaços, Um Profeta é também um óptimo filme sobre o acto de aprender, sobre a religião ou sobre o poder. Mas isso é para outras leituras, para quando, como o filme pede, nos dermos ao trabalho de ver e rever.
Título: Um Profeta
Realizador: Jacques Audiard
Elenco: Adel Bencherif, Hichem Yacoubi, Niels Arestrup, Reda Kateb, Tahar Rahim.
França, 2009.
Nota: 8/10

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