domingo, 2 de dezembro de 2007

Dúvida


Em cena no Teatro Maria Matos durante 2007 esteve a peça Dúvida, de John Patrick Shanley, peça que será reposta entre 13 de Dezembro de 2007 e 13 de Janeiro de 2008. Dada a elevada frequência que a peça mostrou, como aliás começa a ser hábito no teatro dirigido por Diogo Infante, esta reposição vai de encontro ao interesse dos muitos que não puderam ver ou de outros tantos que gostariam de rever. Com encenação de Ana Luísa Guimarães, a peça galardoada com os prémios Pulitzer e Tony, conta com interpretação de Eunice Muñoz, Diogo Infante, Isabel Abreu e Lucília Raimundo. O Teatro Maria Matos volta a apresentar um espectáculo que se mostra consistente na sua linha de programas, um novo passo na criação de um espaço de reflexão, de exigência e de confronto. Como se pretende um Teatro.
Dúvida envolve-nos no contexto de uma igreja e respectiva escola da década de 60 no Bronx, em plena Nova Iorque. Sobre o Padre Flynn, a determinada altura, recairão as suspeita de assédio sobre uma criança, a primeira criança negra na instituição. A fonte destas suspeitas será a Madre Superiora Aloysius que consegue convencer a bem intencionada irmã James para a acompanhar na sua cruzada contra o mal, que na sua convicção, tem o rosto do Padre Flynn. Para ajudar, a mãe da criança, um estereótipo de elevada qualidade, é trazido à questão, numa interessante caracterização da sociedade americana da época.
O que Shanley nos traz é um muito aprazível conjunto de questões, de inegável actualidade e pertinência, numa peça bem estruturada e urdida. Pecará pela sua fluência nem sempre estreita e por um fim, mais do que previsível, insonso. Mas nada lhe retirará a capacidade máxima que, em última análise, é a função do Teatro. A de fazer pensar. E isso Shanley mostra dominar, trazendo à baila, de forma inteligente e nunca demasiado incomodativa, o pior de várias facetas da sociedade, em geral, e do clero, em particular. Dúvida fala-nos, numa primeira instância, de pedofilia. Não da sua parte mais óbvia e tão em voga, vendo a criança, mas pelos olhos de quem se apercebe. A inquietação da necessidade de agir perante a falta de provas que não a convicção. Todo este conflito de interesses ganhará especial interesse, e a isso não terá sido alheia a escolha da peça, quando vista à luz dos acontecimentos recentes que entupiram a imprensa nacional.
Mas Dúvida é ainda um pertinente alerta para outras questões. Uma figura de uma Igreja demasiado burocratizada e hierarquizada. Um clero masculinizado e inoperante. A força da dúvida por oposição à da certeza. A denúncia da pederastia no seio da Igreja. O poder do boato e a incapacidade de evitar as suas consequências. O peso das acções e a necessidade das mesmas. Estes são alguns dos muitos temas que vemos sendo dissecados ou meramente sugeridos na encenação de Ana Luísa Guimarães. Encenação que, apoiada por um maleável e poderoso cenário, se mostrou acertada e tranquila, deixando o protagonismo, quando este é possível, para os actores.
Falar de actores nesta peça é falar de Diogo Infante, que se mostrou, na primeira vez que subiu ao palco do Maria Matos desde que dele se encarregou, cada vez mais maduro e cada vez mais versátil. Vê-lo em Animal, de Roselyne Bosch, e vê-lo como Padre Flynn, é prova cabal disto mesmo. Quer a nível técnico (atente-se, na peça, na sua colocação de voz), quer a nível psicológico. É à volta de Diogo Infante que Dúvida gira, esteja, ou não, presente em palco. Suportando-o temos uma excelente Isabel Abreu (Laramie, Coisa Ruim, Dot.com) no papel de Irmã James e uma experiente Eunice Muñoz no papel de Irmã Aloysius, que ainda assim protagonizou uma interpretação sem chama nem de boa memória, que em nada faz jus aos galões que o seu nome ostentam. Esperemos que esta reposição me desminta.
O que fica desta Dúvida é a certeza de haver Teatro de referência em Portugal. A certeza da consolidação de um projecto, o Teatro Maria Matos, que em tudo revigora e revitaliza o género em Portugal, contribuindo, ainda, para uma chamada activa do público para as salas. Disso, não há dúvida.

Título: Dúvida
Autor: John Patrick Shanley
Encenação: Ana Luísa Guimarães
Elenco: Eunice Muñoz, Diogo Infante, Isabel Abreu e Lucília Raimundo.

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