quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Fome


As interpretações e implicações politicas de Fome são incontornáveis. E, contudo, o que apetece dizer quando se acaba de ver Fome é que é tudo menos um filme politico. É um filme humano e sobre o homem, sobre as suas motivações, conflitos, limites e capacidades. Mas não é um filme politico. Em Inglaterra, viu-se o filme à luz da sua história e o choque veio da possibilidade de louvar o terrorismo e de criar em Bobby Sands um mártir e um herói. Outros, viram nele uma metáfora sobre Abu Grahib e sobre o descontrolo da luta ao terrorismo no pós 11 de Setembro. Outros ainda temem que ele seja lido como um elogio do terrorismo por causas e que legitimize o terrorismo islâmico. Nada disso é culpa de McQueen, é culpa do homem. O homem que ele soube registar com inigualável certeza e acutilância. Fome é um filme sobre todos os conflitos, todos os terroristas, todos os lutadores de causas e todos os que reprimiram essas lutas. Para o caso, aqui, falou-se de Bobby Sands e do I.R.A., e a contextualização é oportuníssima. Mas, quando o filme se torna no retrato do homem e não de um homem, este conflito poderia ser qualquer um, espacial e temporalmente. Por isso mesmo, Fome se preza a tantas e variadas interpretações.
Michael Fassbender é Bobby Sands, activista do I.R.A., que em 1981 morreu após uma greve de fome que durou 66 dias. A interpretação de Fassbender, que inclusive teve acompanhamento médico à semelhança de Sands pela realidade da sua interpretação, é angustiante. Faz-nos remexer na cadeira, coçar o corpo, passar a mão pela garganta e engolir em seco. Tudo no filme de McQueen transborda uma violência, que é também fisica mas vai para além dela. Fome é dos filmes mais brutais dos últimos tempos. Em todos os sentidos, na qualidade e na violência. É bruto, é seco, é agressivo e magoa-nos. O corpo de Sands, ressequido, emagrecido, cheio de escaras, feridas e completamente seco, doi-nos. Os sentidos de Sands, a perda de audição, a dificuldade em focar, a falta de força, afectam-nos. As memorias de Sands e as sensações de Sands e tudo nele é uma constante agressão ao nossos sentidos e à nossa percepção fácil da vida. Harold Pinter escreveu sobre Beckett, curiosamente um irlandês: "Quanto mais longe ele vai melhor me faz. Não quero filosofias, panfletos, dogmas, credos, saídas, verdades, respostas, nada a preço de saldo. Ele é o escritor mais corajoso e implacável que aí anda e quanto mais me esfrega o nariz na merda mais reconhecido lhe fico. Não se põe a gozar com a minha cara, não está a levar-me à certa, não me vem com piscadelas de olho, não me oferece um remédio nem um caminho nem uma revelação nem um balde cheio de migalhas, não me está a vender nada que não queira comprar, está-se borrifando para se eu compro ou não, não tem a mão sobre o coração. Bom, vou comprar-lhe a mercadoria toda, de fio a pavio, porque ele espreita debaixo de cada pedra e não deixa nenhum verme sozinho. Faz nascer um corpo de beleza. A sua obra é bela." Assim é Fome. Uma obra angustiantemente bela.
McQueen, secundado por Enda Walsh na escrita do filme, supera-se de duas formas. Por um lado enquanto artista plástico que é. O filme é belo e as imagens são belas, mas acima de tudo são verdadeiras, são reais. Fazem-nos sentir cada ruga, cada mão que sangra, cada corpo que é violado. Por outro lado, quando nos fala do homem e dos seus limites. Mais ainda do que Sands, é quando McQueen se debruça sobre os presos e sobre a opressão a que são sujeitos que nos questiona sobre o que é o homem e até onde pode ir. Homens que defecam e pintam as paredes das suas celas com as suas fezes lutam contra homens que os espancam violentamente enquanto vasculham os seus corpos. A violência fisica é atroz. Mas é o que está para além dela, os limites a que o homem pode chegar, que nos agride. Contrapondo tudo isto, McQueen filma uma cena de 17 minutos entre Sands e o seu sacerdote em que a camâra não opera um único movimento. Tamanha é a beleza e a intensidade de todo o quadro, que dificilmente nos apercebemos disto. Fome prende-nos, agride-nos e viola-nos. Exactamente da mesma forma como o fizeram àqueles presos.
Título: Fome
Realizador: Steve McQueen
Elenco: Michael Fassbender, Stuart Graham, Helena Bereen, Liam Cunningham e Liam McMahon.
Reino Unido e Irlanda, 2008.
Nota: 9/10

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