sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Antígona

Um efeito perturbador que nos vai assaltando à medida que nos aprofundamos na leitura de obras do classicismo grego é o acharmo-nos na posição de leitor, aluno e filho. A herança grega é capaz de exercer esse profundo encantamento sobre nós pois os grandes clássicos que nos legou não pretendiam circunscrever-se à tarefa de fazer evoluir o deleite artístico, ambicionando simultaneamente educar e transformar uma sociedade ainda virgem mas absolutamente fundadora. Nas suas aulas Nabokov especulou que um grande escritor é aquele que combina três qualidades sob o predomínio de uma: ser um contador de histórias, um professor e um encantador, mas é o encantador que há nele que faz de um escritor um grande escritor. Talvez todos os grandes autores, mesmo os da modernidade, tenham herdado isto de outros como Homero ou Sófocles, porque neles esta agremiação de qualidades é, para o leitor, uma evidência e não uma descoberta.

Ora na Antígona de Sófocles esta hipótese manifesta-se com uma tal vitalidade que não custa compreender a sua constante revisitação decorridos cerca de vinte e cinco séculos. Uma das provas da sua riqueza é a quantidade de interpretações possíveis do texto, construídas ao longo dos séculos, ajustadas ao espírito e ambiente de cada época, sendo esta característica ainda mais relevante quando se identifica na peça a rigidez de construção que a caracteriza como uma tragédia clássica. A sua permanência nos palcos virá, portanto, mais do encanto proveniente da sua tessitura do que da actualidade temática, mesmo que esta actualidade seja, com efeito, impressionante. A Antígona é uma obra exemplar na medida em que reflecte as crenças e medos de um povo, localizado no tempo, à luz da aparentemente eterna dicotomia entre Justiça e Lei. E a ferida está agora, em Portugal, novamente aberta, e entristece ver que Sófocles compreendia o que os actuais defensores do “prove!”, na sua beatice, parecem não compreender: que a diferença entre Justiça e Lei nunca será tão pequena que possa ser desprezada.

É desta leitura que nasce a Antígona de Maria do Céu Guerra: da divórcio entre Natureza e Estado e do fracasso do Mundo, no passado e no presente, em corrigir os males de todas as sociedades cuja lei funciona arbitrariamente. A encenadora transporta-nos assim para um lugar com uma identidade indefinida que nunca conheceremos bem onde existe nem em que época vive – o magnífico coro sugere-nos a passiva sociedade de informação dos últimos dois séculos, Creonte (José Medeiros) o imperialismo de bastão na mão e Antígona (Rita Lello) a mulher helénica ou a heroína da resistência do século XX. Com a linha dramatúrgica seguida a peça mantém-se fiel à estrutura da tragédia e segue a visão que a encenadora propõe, embora corra o risco (assumido) de poder não atrair os espectadores para essa mesma leitura. Se o Teatro já foi educador, hoje tenta sofregamente sê-lo.
Em cena no Teatro A Barraca, em Santos.
Título: Antígona
Autor: Sófocles
Encenação: Maria do Céu Guerra
(Crítica de Pedro Teixeira.)

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