segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

After Darwin


Numa sala de ensaios, com uma plateia ao fundo como cenário, dois actores e a sua encenadora encenam uma peça de teatro. No século 19, Charles Darwin embarca no Beagle para o que será uma viagem revolucionária no mundo da biologia e na concepção do mundo em si. No ensaio, degladiam-se convicções e vontades, acredita-se no milagre do teatro. A bordo do Beagle, Darwin encontra um forte opositor às suas crenças, o capitão Fitz-Roy, que o tentará demover da sua iniciativa evolucionista. É deste duplo conflito que nasce a peça de Timberlake Wertenbaker, uma produção do Teatro Nacional D. Maria II, em cena no Teatro da Politécnica. After Darwin é um olhar sobre um ensaio de uma peça sobre Darwin, ponto de partida para uma reflexão bem disposta sobre biologia, evolução e teatro. Se, por um lado, se relata o desenrolar da história de Darwin e da sua descoberta, por outro desvendam-se, ao longo do ensaio, as dificuldades e os obstáculos de levantar um espectáculo.

O naturalista inglês Darwin ganhou tamanha fama com a sua teoria evolucionista que pertence hoje em dia aquela lista de célebres nomes cuja evocação despertará sempre alguma reacção. Mas nem sempre o seu nome foi sinónimo de referência científica. Aquando do lançamento do seu mais célebre livro, “A Origem das Espécies”, a mera sugestão de que as espécies não eram imutáveis, de que haveria uma luta pela existência que culminaria na selecção dos mais aptos, levantou um coro de indignação no meio cientifico, que apenas anos de comprovação cientifica puderam acalmar. Esta indignação, no fundo baseada no medo, provinha de uma institucionalizada cultura cientifica, baseada em anos de sustentação religiosa que, como em tantos outros aspectos, se revelou castrante para o pensamento racional. Este pensamento religioso, conservador e tradicional, é na peça representado pela voz de Fitz-Roy, o capitão do barco onde Darwin embarca. Representado por Manuel Coelho, numa extraordinária interpretação repleta de um humor muito sóbrio e difícil de encontrar, a personagem de Fitz-Roy vai-se misturando com o actor, símbolo também ele de um tipo de teatro que alguns crêem ver em extinção.

Entretanto, enquanto interpreta Darwin nesta peça, um actor é convidado para interpretar uma série em televisão. Iludido pela fama e pelo sucesso do imediatismo dos tempos que correm, aceita. Apanhados pela surpresa, o seu colega de trabalho e a sua encenadora vêem-se envoltos numa discussão sobre o teatro, que é no fundo uma discussão do evolucionismo. Onde situar o teatro de palco, o teatro de pequenos públicos, num mundo onde a espécie mais forte parece ser a interpretação momentânea, passageira e ligeira das novelas, das séries e do entorpecimento televisivo. Serão Brecht e Shakespeare – referidos na peça – nomes em vias de extinção, espécies de outros tempos que a televisão e os novos actores de pacote instantâneo parecem querer devorar? After Darwin não nos dá a resposta, apenas nos obriga a pensar. Mas, julgando a peça em si, artefacto bastante interessante e consumido em muito pequena escala numa sala de reduzida audiência, somos forçados a tirar uma conclusão.

A encenação de Carlos António é inteligente e explora do texto a sua vertente mais cómica, sem esquecer que After Darwin é um texto eminentemente metafórico e consequentemente dado à discussão pessoal. Darwin, intepretado por André Levy, é-nos apresentado como uma personagem insegura, muito por culpa do actor desleixado e mais preocupado com o seu sucesso pessoal que André Levy também encarna. Neste mau actor, que Levy intepreta sem que consigamos evitar um sorriso constante, estão representadas muitas das “qualidades” da representação portuguesa contemporânea. A representação de muita da so-called “ficção nacional”, das séries de fim de tarde, das novelas de horário nobre. Uma representação que não percebe o teatro, a sua origem e a sua essência, mas que numa cultura de números, de quantidade e não de qualidade, prolifera.

After Darwin não fala de biologia. Não fala de evolucionismo. Não fala de teatro. Fala de todas elas e da forma como se interligam. Um bom exemplar de um tipo de dramaturgia, a peça de teatro dentro da peça de teatro, que não sendo novidade se torna mais complexa de realizar com mestria – embora saibamos que ninguém o fará como Pirandello. Para além da lição de biologia e de evolucionismo, para lá do confronto entre igreja e evolução, entre estabelecido e novidade, mais do que a oposição entre um actor e um bibelot, After Darwin fala-nos de como o teatro é um pilar da própria evolução. Como serve quer como táctica evolutiva – como camuflagem e máscara – quer como análise do objecto alvo da evolução – neste caso, nós. Em nenhum tipo de evolução o teatro deixará de ter lugar.

Título: After Darwin
Autor: Timberlake Wertenbaker
Encenação: Carlos António
Cenografia e figurinos: Daniela Roxo
Elenco: André Levy, Manuel Coelho e Rita Calçada Bastos

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