quarta-feira, 16 de abril de 2008

Don Carlos, Infante de Espanha

“Da mesma maneira que o escultor grego rejeita as vestimentas, como uma carga inútil e embaraçosa, para dar mais lugar à natureza humana, da mesma maneira o poeta grego liberta as personagens humanas que põe em cena do constrangimento igualmente inútil e igualmente embaraçoso do decorum, e de todas essas leis glaciais da conveniência que, no homem, o enchem de artificial, e escondem nele a natureza. Vede Homero e os trágicos: a natureza sofredora fala neles com verdade, ingenuamente, e de maneira a penetrar-nos até ao fundo do coração; todas as paixões jogam aí livremente o seu jogo, e as regras da conveniência não comprimem aí nenhum sentimento.”

Friedrich Schiller em Sobre o Patético («Du Páthétique», 1793)

Da representação: As personagens deste Don Carlos descrevem uma trajectória que não permite a interiorização perfeita e verdadeira por parte do actor se este lhes tentar dar corpo e ânimo recorrendo às emoções que já experimentou em vida, e tão-pouco lhe dão a veleidade de um alívio na tarefa de representar através da delimitação do carácter. Schiller terá criado personagens que se alcançam compreendendo que a representação da natureza humana será tão mais verosímil quanto mais próxima do homem nas suas preocupações fundamentais e mais distante do indivíduo entregue às suas incontáveis circunstâncias, posto que se abandone o frio empolgamento na declamação e se abra caminho à expressão dos sentimentos.
Ora é precisamente esse desnudar que se pretende que D. Carlos (Duarte Guimarães) manifeste ao longo de todo o seu caminho para a morte e que guie Rodrigo, Marquês de Posa (Nuno Lopes) na persecução dos seus ideais. Mas é indubitavelmente quando o rei Filipe II (Luis Miguel Cintra) transita de um estatuto para uma humanidade corroída e fraca que a influência grega de Schiller se faz sentir com mais vigor e a interpretação do encenador se revela plena de virtuosismo, sensatamente contida dentro dos limites expressivos a que a encenação e o cenário obrigam.

Do espaço: No vazio, reinam os jogos de luz, as sombras e as portas, elementos que estabelecem as variações do ambiente ao longo da peça; na quase ausência de obstáculos, pontificam duas esferas de distintos diâmetros, sugestões das influências celestiais, das forças maiores que o homem para sempre dividido entre percorrer as órbitas da pequenez ou da grandeza. Aqui, o minimal amplifica os sentimentos e as ideias ao contrário de algum do Teatro contemporâneo que privilegia as coisas e a decoração.

Uma sala, um espaço aberto e frio apenas levemente aquecido aquando dos amplexos de Rodrigo e D. Carlos, uma câmara de pensamentos, uma estufa de ideia e sentimentos. Quando num poema tudo existe com sensibilidade e engenho, o melhor é prometer-lhe a liberdade e deixá-lo ocupar até os recessos do palco.

Da poesia: O trabalho do helenista Frederico Lourenço parece ter dotado a obra de Schiller da representabilidade de que o poema podia carecer embora preservando-lhe a harmonia melódica e o equilíbrio do verso – em bom português –, soando quase sempre com a naturalidade própria de um original na língua pátria (à semelhança das suas traduções da Ilíada e Odisseia). Don Carlos é poesia que se torna Teatro, que descende do irrepresentável para o representável, para o metafórico, para o real.

Da realidade: Alturas há em que o enquadramento de obras de arte em estilos ou correntes e a consequente análise das suas características formais não faz mais que afastar a obra dos propósitos que orientaram o autor no seu íntimo, desde os seus ideais às suas inclinações afectivas. Não poder viver o Romantismo enquanto corrente, datada que está no tempo, introduz-nos esta necessidade de percorrer Don Carlos à luz dos tempos em que hoje vivemos e que hoje somos; o castigo de isto não empreender poderá ser abandonar a sala vergado ao peso de uma Arte que falou com a nossa vida recorrendo a uma língua que desconhecemos. Temporalizar o intemporal Don Carlos é negar que Schiller revela, através da Arte, a sua profunda insatisfação perante o indivíduo submetido ao poder discricionário.

Da política: O drama familiar contado em Don Carlos assume uma complexidade que lhe augura um desdobramento além intriga: a tragédia particular daquela família real é o espelho da resistência ao futuro de uma forma de hierarquia do Estado e da sociedade que em muitas nações não conseguiu de facto perpetuar-se assimilando os novos valores que então se levantavam, dando origem à vaga de revoluções liberais do século XIX. Schiller enobrece a missão reformadora dos espíritos jovens (D. Carlos e Rodrigo), que mais tarde se reflectirá politicamente, através do sacrifício de Rodrigo e da condenação de D. Carlos às mãos de um pai manietado pela figura do Cardeal Inquisidor.

A tragédia desta juventude aqui imortalizada reside precisamente na sua acção apaixonada sobre uma espécie de mundo que só no tempo de Schiller ameaçaria ruir. Este, ao deslocar um anseio seu e do seu tempo para o despotismo filipino do século XVI que não abdica da tumultuosa Flandres, incorre no desejo de um futuro regido por novos valores que resgatem os indivíduos de uma certa indolência e os levem a construir sociedades mais humanizadas (aqui ouvem-se os ecos de Rousseau). E parte da grandeza desta peça nasce da pureza da mensagem e do seu carácter abstracto que, não se deixando corporizar em formas mais específicas de organização política, cria no espectador uma diáfana esperança no futuro e um desencanto face ao tempo presente. Hoje, como no século XVIII, não escasseiam os motivos para sentirmos semelhante efeito.

No entanto, para agravo do nosso descontentamento, levar ao palco esta recriação poética de Frederico Lourenço talvez seja, nos tempos que correm, politicamente incipiente, mesmo que a Cornucópia se mova ainda neste domínio cada vez mais descaracterizado e empobrecido. O Don Carlos de Luis Miguel Cintra é também, de certa maneira, um suspiro de desânimo perante este técnico século XXI.

Da Arte: Perguntemo-nos: por quê regressar aos clássicos? Em nome de quem persistir nesta dedicação ao Teatro? Aonde nos leva este caminho? À medida que se alonga a distância entre nós e o palco, as derradeiras sensações e um sentimento geral de fruição converter-se-ão numa memória, quiçá numa ideia mais ou menos duradoura. Este contributo dialogará connosco se o guardarmos, mas se não lhe procurarmos dar alguma forma exterior irá sempre subsistir amputadamente, e a Arte gerará tanto o prazer quanto o desconsolo – tal como este Don Carlos, Infante de Espanha.

Em cena de 10 de Abril a 18 de Maio no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa.

Título: Don Carlos, Infante de Espanha
Autor: Friedrich Schiller (Recriação poética de Frederico Lourenço)
Encenação: Luis Miguel Cintra
Elenco: Duarte Guimarães, José Manuel Mendes, Luís Lucas, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Márcia Breia, Nuno Casanovas, Nuno Lopes, Rita Durão, Rita Loureiro, Sofia Marques e Vítor de Andrade.
(Crítica de Pedro Teixeira)

Sem comentários: