segunda-feira, 27 de abril de 2009

A Mulher Sem Cabeça


A grande maioria das leituras de A Mulher Sem Cabeça são exageradas e forçadas. Como num romance de Beckett (tomemos O Inominável como exemplo), custa-nos a admitir que, na maior parte do tempo, realmente não se passa nem se diz nada. Mas, por alguma razão, isso é-nos difícil de aceitar e preenchemos tudo o que lemos como uma qualquer metáfora. Se não percebemos, é porque não lemos como deviamos ter lido. Nada mais errado. Não há grande metáfora social no filme de Lucrecia Martel. Ou, se a há, não é maior nem menor da que existe no filme mais corriqueiro de Hollywood e advém exclusivamente da mera descrição e observação da realidade. Nada é posto em evidência nem exposto de forma diferente do habitual. Nem mesmo as metáforas sobre a protagonista em si, tantas vezes louvadas, são de especial interesse - haverá coisas mais antiga do que adequar a condição climatérica à situação humana?
Posto isto, sobra aquilo de que realmente fala A Mulher Sem Cabeça. De dúvida e de culpa. De uma mulher que não sabe se atropelou um cão ou um homem. E, nesta dúvida, corroi-se e consome-se. O processo psicológico da dúvida é claro. Primeiro o desnorte com a perda da sensação de identidade, depois a lenta recuperação dos sentidos e, por último, o recalcamento e a resolução. É para este estado que caminha a protagonista quando se despede. E temos ainda a culpa, que parece corrôe-la menos do que a dúvida em si - mas é melhor não dizer isto antes que acusem o filme de mais uma metáfora social onde os ricos não têm compaixão. Este filme é o de Lucrecia Martel e ela filma-o como ninguém. Entramos na cabeça da personagem e é nela que vivemos. Ao seu ritmo - ou na falta dele -, com as suas dúvidas, frustrações e remorsos. A beleza estética de Martel está toda concentrada nestes momentos. Nos grandes planos que desprezam a acção e se focam no sub-texto que é a cara da mulher sem cabeça. No vazio que sabe transmitir; na espantosa forma de narrar a sensação de desprendimento da realidade.
O pior de toda a Lucrecia Martel estar aqui é que depois não está em mais lado nenhum. A Mulher Sem Cabeça resume-se ao exercício teórico de explorar o pensamento lentificado e confuso da mulher depois do trauma. Não há filme fora disto. Sem narrativa - embora não se abstenha de uma tímida amostra da mesma; sem ritmo - umas vezes consonantemente com a personagem, outras com o simples intuito de nos aborrecer; sem personagens - à excpeção da protagonista, tudo o resto são espantalhos com curiosidades que a ninguém interessam porque nunca são exploradas. A Mulher Sem Cabeça nunca passou de uma boa ideia de uma realizadora tecnicamente muito inteligente. Como ideia e curiosidade, satisfaz-se plenamente. Como filme, uma conversa de dois cinéfilos num café teria o mesmo efeito.
Título: A Mulher Sem Cabeça
Realizador: Lucrecia Martel
Elenco: María Onetto, César Bordón, Inês Efron e Claudia Cantero.
Argentina, Espanha e Itália, 2008.
Nota: 6/10

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