sábado, 19 de junho de 2010

O Rei está a Morrer


Sobre poucos temas se repetirá tanto a arte como sobre o amor e a morte. Sem grande exagero, mais de 90 de toda a criação literária, musical, cinematográfica e teatral, recai sobre este tema. Sobre o amor já se disse tudo. No rádio, todas as músicas parecem baladas de dor de corno. No cinema, o par acaba morto e separado, ou apaixonado e eternamente feliz. O amor tornou-se chato, porque todos falamos dele e todos dizemos o mesmo. E depois, há a morte. De que ninguém nunca soube falar com o mesmo à vontade ou com a mesma destreza. Sim, há grandes textos sobre a morte, mas esta não aparece repetida diariamente em todas as rádios, todas as salas de cinema e todos os palcos. Porque é dura ou porque não sabemos lidar com ela, a verdade é que tendemos a virar a cara ao problema. O Rei está a Morrer, de Ionesco, é uma das mais inteligentes abordagens ao assunto. Raras vezes se escreveu tão bem o que é morrer.

A peça, encenada por João Mota no Teatro da Comuna, começa por abrir o jogo e pôr as cartas na mesa. O rei vai está a morrer, vai mesmo morrer no fim do espectáculo, e peça é isso mesmo, a fastidiosa e dolorosa espera pela morte do rei Berénger. A morte é inevitável, todos os sabemos, mas tudo parece bonito quando falamos de uma data distante, longínqua e incerta. Ou, como dizia Woody Allen, 'I'm not afraid of death, I just don't want to be there when it happens'. A peça de Ionesco é uma tragicomédia, e com todo o sentido. Como o verdadeiro momento da descoberta da morte, como a própria luta contra o inevitável, como o apegamento ao material, a percepção do vazio. Tudo uma tragicomédia. A tragédia na palavra 'tragicomédia' não é trágica, é fria e não nos tenta emocionar. Nós é que lentamente somos forçados a descobrir que a morte é mesmo trágica e decadente. Mas, acima de tudo, ridícula. O Rei de Ionesco luta contra a ideia que vai morrer, convence-se do contrário e vive na ilusão. Na negação. É deste ridiculo fugir que nos fala a peça de Ionesco.

Já a parte da comédia é o melhor de Ionesco. Não por acaso, o dramaturgo romeno é tido como um dos maiores nomes do Teatro do Absurdo, lado a lado com Pinter e Beckett. Em O Rei está a Morrer, o absurdo está em todo o lado. O Teatro do Absurdo tentava mostrar-nos a falta de sentido da vida com textos aparentemente sem a formalidade a que o teatro nos habituara. Em cenários oníricos, com personagens surreais e com construções que nem sempre pareciam quotidianas. Absurdo, como os sonhos. Absurdo, como a vida. O reino desta peça não existe, o rei idem aspas e as personagens que o acompanham na sua corte são tudo menos pessoas reais. Mas a essência, o estar perante a morte, está lá. O absurdo de não saber o que fazer ou dizer perante a morte – porque não há de facto o que dizer ou fazer – está lá. O texto é um dos mais bem conseguidos do género, a encenação de João Mota é de um saber habitual e a interpretação de Carlos Paulo é a chave-mestra que tudo agrega. Raras vezes se escreveu tão bem o que é morrer.

Título: O Rei está a Morrer
Autor: Eugène IonescoEncenação: João Mota
Elenco: Carlos Paulo, Tânia Alves, Ana Lúcia Palminha, Rui Neto, Mia Farr e Alexandre Lopes

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