sexta-feira, 3 de outubro de 2008

De Homem Para Homem

O que é que vemos quando vamos ao teatro? É simples, aparentemente. Vemos um homem a falar para outros. Neste caso, uma mulher. Ou melhor, um homem. É indiferente, para o caso. Esta é a essência do teatro. A comunicação. O poder do actor de, em cima de um palco, comunicar com o seu público. Contar-lhe uma história, chamar-lhe à atenção de algo, emocioná-lo. Se mais nada disséssemos de Beatriz Batarda, diriamos que ela fez teatro. Talvez nem cheguêmos a conseguir avaliar este teatro que vimos, de tão complexo. Mas temos a certeza de ter visto teatro. De Homem Para Homem, o monólogo que o Teatro do Bairro Alto agora acolhe é demasiadas coisas. Não no sentido em que não se consegue acompanhar a si próprio, mas no sentido em que nos relata uma demasiada complexa. Por isso mesmo, porque assim é a vida, demasiado complexa, De Homem Para Homem é uma peça verdadeira que nos fala, com bastante clareza, de quão complicado pode ser viver uma única vida.
"O actor deve treinar o seu material, quer dizer o seu corpo", escreveu Meyerhold. E assim fez Beatriz Batarda. Para que não se reduza De Homem Para Homem numa espiral de elogios que se sintetizem na pessoa da actriz, convém dissecá-la primeiro, de modo a que não seja possível simplificar tudo isto a uma grande interpretação. Beatriz Batarda é o corpo perfeito, tecnicamente falando. De Homem Para Homem, é a oportunidade ímpar de o mostrar e provar. Desde a sua voz - registo especial para a colocação e intensidade - à maleabilidade do seu corpo. Impressionam, como se torna óbvio, as suas formas e posturas como homem, como mulher, ora mais velha, ora mais nova. Mas impressiona, sobretudo, a capacidade de alternar entre todos estes registos com aparente simplicidade e com rigor técnico mantido. Há um lado humano no teatro, no sentido de exploração de uma personagem. E existe uma lado físico, de capacitância para se moldar a diferentes necessidades. Nesse sentido, no sentido da preparação - e não apenas nesse -, Beatriz Batarda mostrou ser uma das melhores - com pouco risco se adequaria o artigo definido "a" em lugar do indefenido "uma"- actrizes do momento.
Beatriz Batarda é Ella, uma mulher que se vê obrigada, devido às necessidades, a tomar o posto de trabalho do seu marido morto. Esta transição, de mulher para homem, até a um estado indestinto entre os dois, dá-se ao longo dos anos, com o pano de fundo de uma Alemanha Nazi, primeiro, e pós-guerra, depois. Ao desfilar subtil de um pano de fundo que nos soa a amargo e nos sabe a injusto, sobrepõem-se os problemas pessoais, quase esquizofrénicos, de uma mulher que mais não faz do que sobreviver num tempo que o não parece permitir. Há algo de primitivo, quase camaleónico, na forma como Ella se molda e se transforma para sobreviver a todas as adversidades. E há também algo de lógico na forma como todos os actos têm consequências. A obstinação da imitação de Ella origina nela um processo quase esquizo-afectivo de falta de identidade e de unidade. Há algo de metafórico quanto à condição do actor neste processo.
De Homem Para Homem é ainda uma reflexão social. Esqueçamos a notória referência histórica à Alemanha Nazi e localizemos a peça de Manfred Karge hoje. Karge fala-nos de uma mulher, ou de um homem - e nisso, na universalização da personagem e do tema, Karge é fenomenal - que sobrevive às mais profundas condições adversas. À custa de si mesma e da sua identidade. É esta a reflexão que fazemos. Quem somos, hoje, num mundo de corrupção de valores humanos face à decadência dos valores que sempre julgámos seguros? Beatriz Batarda, com Carlos Aladro, percebem a actualidade desta peça falsamente histórica. O cenário, aparentemente desprendido, reflecte-o. A interpretação de Batarda, completíssima, sublima-o. O texto de Karge, exige-o. De todas as maneiras possíveis, De Homem Para Homem é uma experiência imperdível.

Título: De Homem Para Homem
Autor: Manfred Karge
Tradução e Dramaturgia: Vera San Payo de Lemos e Beatriz Batarda
Encenação: Carlos Aladro
Elenco: Beatriz Batarda

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