segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Sonata de Outono

Um ponto prévio. Sonata de Outono é um dos melhores filmes de Ingmar Bergman, uma das obras-primas de um ícone cinematográfico – e teatral – que consegue, neste filme, para além de um retrato profundo e exacto dos problemas da relação maternal, uma síntese, nalguns pontos, da sua obra enquanto autor, especialmente no que ao papel da mulher diz respeito. Com interpretações da sua eterna Liv Ullmann, da eterna Ingrid Bergman, de Lena Nyman e Halvar Bjork, o filme foi premiado como melhor filme estrangeiro pelos Golden Globes e pela National Board of Review. Qualquer tentativa de reprodução deste filme está, de antemão, condenada a uma comparação que será, invariavelmente, redutora. Está, no fundo, condenada a ser inferior ao seu ponto de partida.

Talvez por isso mesmo, a peça agora em cena no Teatro São Luiz opta, e bem, por se distanciar, tanto quanto possível do filme. Tanto quanto é possível porque, como em quase todos os seus filmes, Bergam é um realizador bastante teatral. Se por um lado isto favorece a adaptação teatral, por outro lado é uma possível limitação à capacidade da mesma se afastar do filme. O primeiro ponto a favor da versão teatral é ter sido bem sucedida nesta transição. Para tal contribui a redistribuição temporal – como numa tragédia, tudo se desenrola apenas num dia –, a encenação de Fernanda Lapa e Cucha Carvalheiro e a cenografia de António Lagarto. Mas se reformulação do guião é exemplar a todos os níveis e a encenação é, em geral, bastante agradável, a cenografia de Lagarto é, apesar de perceptivelmente simbólica, nem sempre elegante, como o registo da peça exige. Uma opção que, contudo, não se pode deixar de julgar inteligente para colmatar as dificuldades técnicas – ou, poderemos dizer, musicais.

O registo da peça não foge, ao contrário de alguns pormenores do formato, ao registo do filme. E ainda bem. Sonata de Outono é um braço de ferro mental entre Charlotte, a pianista brilhante e mãe ausente, e Eva, uma das suas filhas, cuja personalidade é forjada no fogo da forte presença da sua mãe, que se nota ainda mais na ausência da mesma. Eva e Charlotte não se vêem há sete anos. Eva é casada com Viktor e em sua casa, sem que a sua mãe tenha conhecimento, reside ainda a sua irmã, Helena, vitima de uma doença degenerativa num estado avançado. Para além das personalidades e aparências contrastantes, para além da percepção do mundo mental feminino, para além da maior importância da mãe face ao pai, para além de tudo aquilo a que Bergman nos habituou, o texto atinge o seu ponto forte no confronto entre mãe e filha. O despoletar de velhos ódios, de memórias que se julgavam recalcadas ou ultrapassadas, o regressar de antigos desesperos e incompatibilidades, o atirar de tudo o que não foi dito, o ensombramento do passado no seu apogeu.

Daí que grande parte do sucesso do texto passe, inevitavelmente, pela interpretação dessas duas figuras femininas. Se no filme assim se passava, na peça há um reforçar desta situação, em grande parte porque a personagem de Viktor perde algum espaço e a de Helena adquire mais o contorno de um bibelot artístico que propriamente uma personagem. Fernanda Lapa não é Ingrid Bergman, mas não precisa, porque a sua experiência é suficiente para não cair no erro da comparação, realizando o seu papel como nos habituou. Segura e confiante. Se Fernanda Lapa não é Ingmar Bergman, já Ana Bustorff pode bem ser tanto ou melhor que Liv Ullman, não porque Ullman não seja genial – porque o é – mas porque Bustorff se revela luminosa e condutora do texto, fazendo a peça girar em torno de si.

Com sinceridade, não há grande novidade ou surpresa nesta versão de Sonata de Outono. Nada nos é dito que Bergman não o tenha já feito. Ainda assim, uma peça sóbria e, como o filme, de grande interesse, não deixa de dar cartas no panorama teatral português. Por isso, por Bustorff, ou apenas pelo filme ou por Bergman, este é um espectáculo importante. Porque a percepção da relação mãe-filha assim o merecem. Ou, como se escreve num texto do S. Luiz, “O instinto maternal é uma mentira ou Sonata de Outono.”

Sonata de Outono é uma co-produção SLTM e Escola de Mulheres-Oficina de Teatro e está em cena na Sala Principal do Teatro São Luiz, até 25 de Novembro.

Título: Sonata de Outono
Autor: Ingmar Bergman
Encenação: Fernanda Lapa e Cucha Carvalheiro
Elenco: Fernanda Lapa, Ana Bustorff, Virgílio Castelo e Marta Lapa

Sem comentários: