quarta-feira, 8 de abril de 2009

A Tempestade


Segunda parte do ciclo "A Caverna do Mágico", iniciada com Os Gigante da Montanha de Pirandello, A Tempestade está em cena no Teatro da Cornucópia até 26 de Abril. Conhecida por ser uma peça-síntese da obra do dramaturgo inglês, Tempestade contém várias referências a anteriores obras do mesmo. Da mesma forma, a versão da Cornucópia, e até por se tratar da comemoração dos 35 anos de companhia, enche-se de referência a anteriores encenações - a maioria passando despercebida. Mas não é este exercício de auto-revisitação, quer do autor quer da companhia, que suscitam interesse no público - até porque ao público passam despercebidos. É a complexidade de ambos. O texto de Shakespeare é de uma multiplicidade de sentidos e de interpretações que nos obriga a repensar o que vimos à luz de vários ângulos. O teatro de Shakespeare habituou-nos a ser auto-suficiente, onde o que uma personagem diz é o que uma personagem quer dizer - e assim se constroí uma história. A Tempestade, por muito que não tenha especial sub-texto, vive da construção metafórica do jogo de personagens que o texto, por si, não explora. Apenas na montagem da peça, e no jogo das personagens, se percebem as metáforas que o texto esconde. Até porque estamos longe de poder fazer uma dicotomia entre o bem e o mal, se é que ele existe na peça, ou se é sequer que essa divisão aqui interessa. Interessa, ao texto, que reflictamos. No poder, por exemplo. Na exploração do poder e nos interesses no mesmo. Ou na ganância e na forma como a mesma é um poderoso motivo de traição ou de apropriação. Ou na arte de lambe-botismo, afinal mais internacional do que nos querem fazer crer. A Tempestade é um texto demasiado rico para que possamos aproveitá-lo todo de uma vez. O que podemos desejar de uma companhia como a Cornucópia é que nos abram os olhos para outras abordagens, para visões que nos tivessem escapado, para um pormenor que, pela leitura, não deslindáramos. Ou, simplesmente, que nos apresente um texto e que sorvamos o mais possível.
Do teatro da Cornucópia esperamos tudo - do teatro, enquanto produção, também, mas aqui enquanto espaço físico. O que desta vez nos apresentam é uma disposição à medida do texto. Profundo. A acção é vasta e acontece em espaços diferentes. E, apesar de acontecer numa ilha, a encenação prefere criar a ideia da ilusão em vez de se centrar no espaço físico da ilha. Como se, apartir do espaço de Próspero - a personagem de Cintra - se controlasse o resto da acção - mas a esse ponto chegaremos quando se voltar a falar de Pirandello. A opção é, sempre, pela ilusão e pela fantasia, negando completamente a verosimilhança. Mesmo que isso crie confusão entre os planos - como na opção arriscada de as personagens interagirem com o músico em cena. Tudo está à mostra, como que para nos lembrar continuamente que isto é teatro. Não temos de acreditar, temos de nos deslumbrar. Daí que o músico esteja em cena ou que o barulho dos trovões seja fisicamente visível. Como se para chegar ao deslumbramento tivéssemos de vencer as barreiras convencionais que o teatro moderno tentou impingir. (E, por falar em deslumbramento, porque não falar em Nuno Lopes e na construção do seu Caliban, fisicamente impressionante e grotesco?). A personagem de Caliban é sintomática de como o texto de Shakespeare é complexo. Não há uma definição clara sobre a moral de Caliban, explorado mas ao mesmo tempo rejeitado no fim da peça. A história dele, cenicamente, chega a confundir-se com a do jovem príncipe, quando parece haver um paralelismo entre ambos. E é nele, apesar de toda a brutalidade, que se materializa o deslumbramento e o sentimento infantil da ilusão.
É esta ilusão que une Os Gigantes da Montanha a A Tempestade. Ambos falam, ainda que um mais directamente do que o outro, de teatro. As semelhanças entre Próspero e Cotrone são notórias. As diferenças entre os dois são mais interessantes. Enquanto Cotrone era um mago desterrado que procurava fazer ver às pessoas o quanto a sua ilusão era fundamental, Próspero é um mago magoado que deseja, como se verifica no fim, abandonar a sua magia para regressar ao mundo dos outros. Como se Próspero estivesse farto, ou cansado, dos seus truques, que a ninguém interessavam naquela ilha senão à sua filha ou ao escravizado Caliban. E mesmo Ariel, a fantasia e a magia em forma de pessoa, é liberto da sua função no fim da peça. Como se o teatro - que é, em parte, Ariel - tivesse necessidade de se libertar do seu encenador - o mago - para ser livre. As leituras, no que toca ao papel do teatro, são inúmeras em ambas as peças. Em A Tempestade são mais interessantes porque menos óbvias e menos directamente relacionadas. Numa peça demasiado grande - não é, mas poderia ser, uma alusão ao tempo - para que a possamos entender, é a própria reflexão sobre o teatro que dá o mote para que possamos entender este Tempestade da Cornucópia à luz da companhia.
Título: A Tempestade
Autor: William Shakespeare
Tradução: José Manuel Mendes, Luis Lima Barreto e Luis Miguel Cintra
Encenação: Luis Miguel Cintra
Elenco: António Fonseca, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, João Pedro Vaz, José Manuel Mendes, Luis Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Márcia Breia, Nuno Lopes, Pedro Lamas, Ricardo Aibéo, Rita Durão, Paulo Moura Lopes, Sofia Marques, Tiago Matias e Vítor D’Andrade.

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