quarta-feira, 30 de abril de 2008

Obviamente Demito-o!

Em vários sítios se ouve como as manifestações do 25 de Abril se esbatem cada vez mais na indiferença. Na indiferença de uma nova geração que parece desinteressar-se da herança de liberdade que carrega e na indiferença de uma geração antiga a quem o esforço passado parece imiscuir-se com o marasmo de actualmente. Cabe, também, ao teatro e à arte em geral, como sempre coube, actuar sobre a mentalidade social, reavivando-a ou educando-a, conforme o caso. Se for esse o caso, se se mostrar necessário que um agente actue sobre a sociedade, relembrando-lhe a razão porque um dia um país se insurgiu contra um regime criando uma revolução, a peça em cena n'A Barraca é um bom início.
Obviamente Demito-o! é escrito assim mesmo, sem vírgula, pois, como diz o seu autor Hélder Costa, "Humberto Delgado proferiu-a de forma violenta e sem pausas". É um retrato fiel da peça. Violenta, quando necessita. E vigorosa, na forma como expõe os seus temas e as suas convicções. Hélder Costa cria uma sucessão de vários quadros onde mistura, basicamente, dois tipos de situações. Referências históricas e, na generalidade, biográficas, da vida do General Humberto Delgado e de Salazar; e recriações de diversas personagens-tipo e de ambientes vividos na época pelo Portugal de então. Vemos Delgado, Salazar, Kubitschek, Franco ou Correia de Oliveira. Mas vemos também o jovem lançado à guerra, a revolucionária torturada pela PIDE ou o agrário amedrontado pela possível queda do regime.
É nesta segunda parte, na realidade social que os vários quadros descrevem com inteligência, que reside o melhor de Obviamente Demito-o!. Não só pela força das interpretações, mas também pela sageza com que se utilizam recursos diferentes para transmitir diferentes mensagens. Há força e veracidade na violência, psicológica e fisica, com que se tortura na PIDE. Mas há caricatura e manha na cartada de um fim de tarde de um grupo de latifundiários. Os quadros, em geral curtos e a suceder-se continuamente, fazem de Obviamente Demito-o! uma peça de grande ritmo e que, com raríssima excepções, não cansa. Esse é também um dos seus calcanhares de Aquiles, como se previa com o risco que o género pressupõe. Ligeira falta de sequência e inexploração de alguns temas são as consequências lógicas quando se acentua o ritmo, a velocidade e os quadros curtos. Decisão acertada, não obstante, a de Hélder Costa.
Para mais, há as habituais intrigas e corrupções governamentais, impossíveis de contornar quando se fala de Portugal, especialmente o da altura. Revemos a biografia de Delgado e o seu apoio popular em contraste com a decadência de Salazar e do regime. O risco de falar de Salazar e do seu regime é cometer alguns dos erros que o mesmo cometeu. É ser vicioso, pintar Salazar e os seus apoiantes como demónios e os seus opositores como heroís vitais e plenamente gloriosos na sua luta. Talvez ainda sejamos demasiado frescos, demasiado novos, para conseguir escrever - e representar - Salazar e a sua ditadura de forma isenta. Não é, nem será nunca, um erro representá-lo assim, mas por enquanto não haverá outra opção. Se tudo tiver a qualidade de Obviamente Demito-o!, que a opção se repita.

Título: Obviamente Demito-o!
Autor: Hélder Costa
Encenação: Hélder Costa
Elenco: João D'Ávila, Sérgio Moura Afonso, Maria do Céu Guerra, Mariana Abrunheira, Rita Fernandes, Susana Costa, Adérito Lopes, Luis Thomar, Rui Sá, Sérgio Moras.

Sem comentários: