quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Gomorra

De que é que falamos quando falamos da Máfia? Na maior parte das vezes, não falamos de nada porque, simplesmente, não sabemos nada sobre ela. Sabemos, com toda a certeza, que a Máfia é algo perigoso, mas não é, em verdade, essa a imagem que guardamos dela. Guardamos uma imagem charmosa, plena de adrenalina e coragem, com grandes tiradas em italiano, confrontos épicos e vidas de luxúria e vicios. Não sabemos nada da Máfia. E, contudo, poucas realidades foram tão retratadas como essa. Lembramo-nos, à cabeça, de Scarface ou de O Padrinho, mas esses talvez nem tenham sido as que mais contribuíram para a generalização da imagem da Máfia. Foram, sem dúvida, 2 dos filmes que mais contribuíram para a estilização e tipificação do género. Mas, o que em grande parte eternizou a Máfia Italiana, é a forma como esta, em verdade, se massificou. Filmes Série B, grandes êxitos, filmes independentes, filmes europeus, hollywood, filmes que tentaram impôr uma estética, filmes que copiaram essa estética, filmes que a satirizaram. A Máfia generalizou-se no cinema. E, com tudo isso, ficámos sem saber nada dela.
Não esquecemos esta Máfia que o cinema imortalizou e que, acima de tudo, nos fascina. E os seus aspirantes também não. Marco e Ciro, 2 personagens que seguimos, lembram-nos disso. Mas lembram-nos, também, que a Máfia é real. Da melhor forma, da mais crua e da mais desiludida. Com frieza e desprendimento. Gomorra mostra-nos o seu encantamento, a sua ilusão de que a vida em Nápoles se rege algo entre um jogo de computador e uma súmula de vinte anos de cinema sobre Itália. E mostra-nos, como tinha de ser mostrado, como tudo isso é patético, como a imagem que temos de Nápoles é uma sátira que em nada confere com a realidade. A realidade está bem longe de ser agradável. É cruel e perturbadora. A realidade fala-nos da Camorra, de um clima de guerrilha que nunca imaginamos por detrás dos fios de ouro, dos assaltos glamorosos e da mansão de Marlon Brando. A realidade é feita de tráfico de droga, de consumo de droga, de armas e de mortos; de miudos que nascem numa realidade que não escolhem, mas à qual se adaptam, onde criam os seus ídolos, onde projectam as suas ambições. Não há futuro, projectos, saídas ou escapes, apenas o lento emaranhar no ciclo há muito criado. Esta é a Máfia que Hollywood não consegue mostrar.
Gomorra é, por tudo isto, um filme necessário. Como o foi o livro de Roberto Saviano, em que se baseia o filme. A história de Saviano, a forma como fugiu à Máfia e a insegurança em que vive hoje são assuntos conhecidos de todos. E que, à luz do filme, fazem sentido. Esta é a beleza de Gomorra. É real. Aquela é a mais real Nápoles que provavelmente conheceremos. Sem embelezamentos, sem grandes tiradas, sem maquilhagem. Fazia falta um filme que nos fizesse parar em vez dos nos acelerar. Gomorra é, ainda, um filme inteligentemente feito. Tem os ritmos, as passagens e as velocidades que a sua intensidade precisa. Sabe ser lento quando a isso é obrigado, mas não se esquiva a demonstrar que a violência é o padrão normal. Sem ser espectacular ou espalhafatoso. A violência, a verdadeira violência, não é um espectáculo. É curta, directa e inesperada. Mas Gomorra também não embarca em exercícios de auto-defesa ou de explicação, à imagem de Cidade de Deus. Pelo contrário, é acusatória e inquisitória. Não de nomes, mas de mentalidades. Não de famílias, mas de culturas e educação. Este não é o filme da Máfia com que sempre sonhámos, mas é o filme de que precisávamos.
Título: Gomorra
Realizador: Matteo Garrone
Elenco: Salvatore Abruzzese, Simone Sacchettino, Salvatore Ruocco, Vincenzo Fabricino, Vincenzo Altamura e Gianfelice Imparato.
Itália, 2008.
Nota: 8/10

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