quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O Ano do Pensamento Mágico



“Pode parecer que foi há muito tempo, mas não vai parecer quando vos acontecer a vocês”

A voz de Eunice Munoz continua a ressoar.

Na noite de 30 de Dezembro de 2003 Joan Didion e o seu marido John Dunne, entram em casa depois de visitar a filha, Quintana, internada na Unidade de Cuidados Intensivos com uma infecção generalizada. Sentam-se para jantar e, a meio de uma conversa, o silêncio. John morre. O Ano do Pensamento Mágico é um testemunho de vida. Real. Aconteceu. Nestas datas. Com estas pessoas. E foi escrito. E adaptado para Teatro. É difícil iniciar uma dissertação, presunçosa crítica, sobre esta obra, vivida e escrita por Joan Didion, neste teatro, protagonizado por Eunice Munoz, encenado por Diogo Infante. Difícil porque não se consegue dar uma cronologia lógica ao texto, nem em termos de importância, nem em termos de tempo, nem termos de nada.

Podemos recomeçar. Do início então. Ou então do fim. Porque nesta peça o tempo é intemporal. Embora se definam avanços e recuos cronológicos, a viagem é um contínuo em que tudo se mistura e a mistura se tempera. Mas há a chamada Perturbação do último Acontecimento – será que este último pode mudar o sentido de toda uma panóplia de acontecimentos? Ou será que conta mais que todos os outros? Quando acontecem, não há ordem cronológica para os momentos, passam inexoravelmente a compor a tela da vida, onde tudo se confunde, mas onde tudo tem se dispõe num lugar acessível à arquitectura de cada mente.

Joan Didion é uma jornalista, ensaísta, romancista, guionista e, mais recentemente, dramaturga norte-americana, a quem foi atribuído o National Book Award na categoria de não-ficção em 2005 pela obra O Ano do Pensamento Mágico. Porquê “Ano do pensamento mágico”? Didion escreveu para por fim ao pensamento mágico, à reconfortante ideia de se que vive para sempre. Escreveu para se resolver e poder dar sentido ao que lhe acontecera. Para poder continuar sem a amarga magia da redoma da ilusão. Antes agarrar-se ao que realmente existe. Porque a dor é inevitável e necessária. Mas permite a realidade. Permite exorcisar os “não sei” que tudo fazem morrer. E alcançar uma decisão. Viver.

Sinto-o também como uma declaração de Amor. Às vezes é preciso dizer adeus, deixar os mortos morrer. Mas é difícil quando se ama “mais do que apenas mais um dia”. O Teatro baseado em memórias reais (será que todas as peças de ficção terão também origem em reflexão pessoal?), nesta história trágica, torna-se mais intenso. Exige por parte dos actores uma grande busca de memória afectiva e há uma tendência para utilizar mais o que é de cada um, a própria experiência. Como se uma base verídica necessitasse de experiência verdadeira. Serão as lágrimas mais sentidas?

Eunice Munoz desmistifica o que de mito isto possa ter: “Há uma grande diferença em o texto não ser ficção... causa uma maior emoção. Sinto-o de outra maneira, é verdade”, mas também nos conta que é imprescindível estarmos apaixonados por qualquer texto. E afirma sem pudor que não chorou quando leu o texto pela primeira vez “As lágrimas chegam quando é preciso que cheguem, por isso é que sou actriz!”. Ainda assim confessa em lábios semi-cerrados que “dei comigo muitas vezes a necessitar de estar mais com o texto, e a fugir dele, como se às vezes fosse preciso ir ler outra coisa”.

O seu desempenho, se me permitem o apontamento, atinge-nos inesperadamente. Pede-nos mais do que estar ali sentados em silêncio.Quase nos ensina a suportar a dor sem nos deixarmos diminuir por uma auto-comiseração (essa volátil armadilha). Os monológos são perigosos, mas Eunice não desilude. É de olhar assertivo e penetrante, com uma atitude simples que reconhece “foi um grande presente que o Diogo (Infante) me deu”.

Não fosse uma gigante do Teatro Português, não fosse ter iniciado a sua carreira na representação aos cinco anos de idade na pequena companhia teatral ambulante da sua família, não fosse o ter pisado o palco do Teatro Dona Maria II (TNDM II) pela primeira vez há 68 anos com Amélia Rey-Colaço a quem chamaria “a mestra do seu coração”, não fosse a carreira, também, no cinema como protagonista Beatriz da Silva em Camões de Leitão de Barros,não fosse por ventura o convívio e trabalho próximo de grandes como Palmira Bastos, Raul de Carvalho, João Villaret, Maria Matos Raul Solnado e Ruy de Carvalho. E também poderíamos dissertar sobre as diversas distinções e homenagens a saber: a de melhor actriz em 1963 (e também em 1986), ou Prémio Voz, ou o Globo de Ouro de Mérito e Excelência em 2008, ou mesmo o grau de doutor honoris causa este ano.

Não fosse o dispensar qualquer apresentação ou rótulo, não fosse esta sublime e inantigível magnitud e poderíamos sentar-nos durante largas horas a falar e relembrar a carreira e a própria Eunice Munoz. Receio não ser necessário. Mas O Ano do Pensamento Mágico não é sobre Eunice Muñoz. Nem tão pouco é sobre o seu encenador Diogo Infante, que depois de director artístico do Teatro Maria Matos, a desempenhar actualmente e desde 2008 mesma função no TNDM II, dirige esta peça de forma humilde mas não menos brilhante. Escolheu o texto a pensar em Eunice Munoz, para a sua “re-estreia” neste teatro e embora não apresente a protagonista desta monólogo basta o seu olhar para quase se conseguir agarrar a admiração profunda que sente, pela Obra, mas principalmente pela Pessoa: “Eunice recomeça sempre do nada, da inquietação, da busca incessante do sublime que já é seu”.

Confessa que ao enfrentar este texto confrontou-se com as suas próprias perdas, dores e memórias, mas que a par da autora original do texto Joan Didion, também ele se resolve neste texto. Principalmente porque teve a oportunidade de partilhar este processo emocional com amigos, Miguel Seabra (responsável pelo desenho de luz), Catarina Amaro (na cenografia e figurino) e João Gil (pela música original). Principalmente quando o todo o espectáculo recriado de uma obra literária com base numa história verídica, por toda esta equipa, se funde numa só Eunice Muñoz. Diogo Infante, desarmado de falsos elogios ou representações apresenta a peça como uma viagem de sustentação interior e é com um sorriso sincero que confessa ter chorado muito, “mas não de dor, foi de prazer… de ver alguém trabalhar assim”. Mas não. Esta peça não é sobre nenhum deles. O Ano do Pensamento Mágico é sobre Joan Didion, mas não é sobre Joan Didion. É sobre as pessoas todas, sobre a experiência de qualquer vida humana. É sobre o inevitável de todos nós.
Título: O Ano do Pensamento Mágico
Autor: Joan Didion
Encenação: Diogo Infante
Elenco: Eunice Muñoz
(Texto de Marta Galrito)

2 comentários:

Ana Belo disse...

Ah, isto já é um bom espectaculo?!

Lídia disse...

Hoje, alguém, chegou com esta página do teu blog, ao teatro. Tal como chega todos os dias, com outras críticas acerca do "Ano do pensamento mágico". Já não vinha aqui há algum tempo, e fiquei feliz quando achei que te ia ler. A crítica é interessante. Mas gostava de ler o Gustavo, e o que ele sentiu ao ver o espectáculo.
beijo.