quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Os Gigantes da Montanha


De Pirandello, sempre se espera uma reflexão sobre o teatro em si. Aquilo a que assistimos na larga maioria das peças de teatro é um recurso a uma forma - a dramaturgia - para expôr um conteúdo, uma ideia, uma reflexão, ou simplesmente para contar uma história. O teatro de Pirandello, de alguma forma, supera todo este processo lógico e conveniente. Pega nas cartas com que geralmente jogamos, baralha e volta a dar. Não da forma que esperávamos, nem sequer necesariamente de forma equitativa. Tal como em 6 personagens em busca de autor, em Os Gigantes da Montanha, a sua última e derradeira peça que nunca chegou a completar senão num testamento oral, Pirandello retorna a reflexão sobre o que é o teatro, de que vive e como vive. É esta peça incompleta que o Teatro da Cornucópia escolhe como centésima peça. Adoptando uma visão rigorosa da obra - como é hábito na companhia -, Christine Laurent opta por pegar na peça como a conhecemos, sem o terceiro acto que nunca chegou a ser escrito, apenas transmitido oralmente ao filho de Pirandello pouco antes de morrer.
E o que é, então, este teatro de que nos fala Pirandello? É imaginação. É verdade. E é crença. É uma fuga da realidade, do mundo dos costumes, das ordens e do estabelecido, que divide a regra e esquadro o mundo entre o que é real e possível e o que é louco e surreal. O texto fala-nos da capacidade infantil que reside dentro de cada um de nós, do instinto teatral que temos em criança, da habilidade de brincar. Tudo conceitos que vamos perdendo ao longo da vida, à medida que nos julgamos mais sérios e adultos. É a crença e a fé no impossível e na imaginação que movem o teatro de Pirandello. Vemos o que acreditamos ver, e apenas se vencermos a barreira da impossibilidade de o estarmos a ver. Porque é isso que esperamos, ou deviamos esperar, duma sala de teatro. Alguém ser capaz de nos ludibriar, de nos enganar, de nos fazer crer em algo absurdo e irreal mas que, naquele curto espaço de tempo, é a mais pura das realidades.
Cotrone é um mago que reside afastado do mundo com a sua companhia de loucos e marginais, os Scalognatti. A eles recorre a companhia de teatro da condessa, um grupo de teatro em busca de espaço e público para pôr em cena a sua peça, a A Fábula do Filho Trocado. É uma companhia caída em desgraça e no insucesso, cansada e desgastada, no corpo e na convicção, que vive na miséria à procura de alguém a quem representar a sua peça. É da junção destes dois grupos, destes dois teatros, que se desenrola a peça. Cotrone e os seus vivem permanentemene na ilusão e da ilusão, e é essa mesma ilusão que vai fascinar a companhia da condessa, que sem saber procura o que ali lhes oferecem. Um teatro real, verdeiro e essencial. E aqui, na junção de todas estas personagens, a peça de Pirandello, uma obra no saber escrever teatro dentro do teatro, torna-se, mais do que imaginética, metafórica. Há um conceito de teatro muito claro, baseado na verdade teatral que tanto autores defenderam. Mas há também crítica em Os Gigantes da Montanha. Crítica a um teatro comercial e que se rege apenas pelo público que necessita e pelos fundos que esse público lhe traz. Crítica a um exagero do teatro falso que interpreta constantemente e se ridiculariza - expressa por vezes na personagem da condessa, uma actriz a tempo inteiro, para o bem e para o mal. Crítica a um público que se revela com falta de imaginação, com falta de fé, estupidificado pela sua incapacidade de acreditar em algo que fuja dos seus parâmetros quotidianos - e quem são os gigantes que se ouvem ruidosamente no fim senão nós, o público?
Os Gigantes da Montanha é um exercício teatral ímpar. A nível dramatúrgico, pela oportunidade de uma visão sobre a obra epifânica de Pirandello, um texto invulgar e sintético do universo teatral do autor. A nível de palco, pela absurda megalomania que o espaço e a encenação representam. Aliás, num texto como o de Pirandello, em que se preza a loucura da imaginação e da experiência, não poderia haver opção mais fiel do que a tomada, adoptando um espaço de liberdade e onde pequenas surpresas decorrem ao longo da peça, testando a nossa capacidade de sermos surpreendidos. A nível de interpretação, porque de todos os lados somos agredidos com a capacidade de ser um actor ao nível do que nos pede o teatro de Pirandello. Desde um simples fantoche que nos faz duvidar de ser uma pessoa ou um boneco, até à elevada qualidade das personagens principais - Luis Miguel Cintra e Rita Loureiro -, passando pelos pormenores deliciosos com que Márcia Breia nos presenteia. O que é o teatro? O teatro é isto mesmo.
Título: Os Gigantes da Montanha
Autor: Luigi Pirandello
Tradução: Luis Miguel Cintra
Encenação: Christine Laurent
Cenário e figurinos: Cristina Reis
Desenho de luz: Daniel Worm D’Assumpção
Elenco:David Almeida, Dinis Gomes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Márcia Breia, Paulo Moura Lopes, Pedro Lacerda, Pedro Lamas, Ricardo Aibéo, Rita Durão, Rita Loureiro, Sofia Marques e Tiago Matias.

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