quarta-feira, 14 de maio de 2008

Começar a Acabar


Quanto tempo consegue um único homem, sozinho em palco, com um cenário minimalista, captar a nossa atenção e deixar-nos presos e embriagados pela sua conversa? Se esse homem for João Lagarto com o seu discurso Beckettiano, certamente o tempo que quiser. Começar a Acabar, a peça agora reposta na Sala Estúdio do Teatro Nacional D.Maria II, é uma colectânea de textos de Samuel Beckett, compilados pelo mesmo para criar o monólogo Beginning to end, que João Lagarto viria a traduzir. De que trata Começar a Acabar é uma pergunta complexa de mais para uma resposta simples. Um homem, decadente, arrasta-se até à nossa presença e afirma-nos estar a morrer. Neste final de vida, por entre a sua loucura, somos guiados pelo ritmo das suas palavras - e quão importante é o ritmo nestes textos de Beckett - através de pequenos episódios da sua vida. A sua fugaz relação paterna e a sua demasiado longa relação materna, ou pormenores aparentemente aleatórios ombreiam com subtis reflexões sobre a vida e, acima de tudo - ou será o mesmo? -, a morte.
"Ele é o escritor mais corajoso e implacável que aí anda e quanto mais me esfrega o nariz na merda mais reconhecido lhe fico." Assim falava Harold Pinter sobre Beckett em 1954. Ambos futuros Nobel, têm o seu nome ligado ao Teatro do Absurdo, de que Começar a Acabar é sumário perfeito e apurado, por vários motivos. Primeiro, porque nasce da reunião de textos de Malloy, Malone está a morrer, O Inominável e À espera de Godot. Todos textos marcantes de Beckett, nenhum como o último, um marco no teatro do género que rasga, com alguns textos de Ionescu, com o teatro consumado da altura, que se dividia entre Brecht e Artaud. Segundo, porque a personagem deste monólogo resume em si características básicas que se vêem divididas por várias outras peças de Beckett, desde Há dias felizes a Endgame. Uma espécie de mendigo com uma loucura muito própria - com toque de bipolaridade, alucinações e comportamentos obsessivo-compulsivos - que, como personagem, renega um pouco o conceito clássico de personagem com um passado e uma história notórias. Terceiro, porque a temática de Começar a Acabar é um óptimo ponto de partida para os textos de Beckett e do seu Teatro do Absurdo, nascido da união entre o surrealismo - na forma e na textura, maioritariamente - e o existencialismo de Sartre - que é, a par de Camus, dos primeiros pioneiros do género, tematicamente falando.
Prémio da Crítica para Melhor Actor de 2006, João Lagarto é o rosto, o corpo e a voz por trás de tudo isto. Quem ler o presunçoso parágrafo anterior, de certo não julgará a aparente simplicidade da peça em causa. O cenário é envolto em escuridão com três simples lâmpadas e João Lagarto é o mendigo que sentimos personificar diversos estados de alma. Há períodos de revolta, mas emana deste mendigo uma aparente tranquilidade com o seu estado, com a consciência do seu estado. A proximidade entre a morte e a vida, a forma como ambas são desprovidas de sentido e a maneira como isso é, estranhamente, tranquilizante. Espera-se a morte e vive-se a vida como se esperássemos por Godot, inventando truques para passar o tempo, a única ocupação possível que existe. Aqui, para fazé-lo, chupam-se seixos e inventam-se formas matemáticas de o fazer. João Lagarto canta, exaspera-se, revolta-se, reinventa a personagem três a quatro vezes, provoca gargalhadas satíricas e consegue comover com a sua demência. Não é comum aliar tão bem a profundidade e premência de um texto com a qualidade e irrepreensibilidade de um actor.
Título: Começar a Acabar
Autor: Samuel Beckett
Encenação: João Lagarto
Elenco: João Lagarto

1 comentário:

ana salomé disse...

concordo plenamente. :)