sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O Construtor Solness


Para abertura da nova época teatral, escolheu o Teatro da Cornucópia trazer a cena uma das peças de Ibsen menos conhecidas do grande público. Henrik Ibsen, dramaturgo maior e referência constantemente percebida no Teatro contemporâneo, é, paradoxalmente, dos menos representados em Portugal. Menos ainda se fugirmos às suas peças tradicionalmente mais conhecidas. É neste contexto que o Teatro da Cornucópia apresenta O Construtor Solness.

Retrato fiel e, por vezes, realista do final do século XIX, O Construtor Solness é mais que uma mera história, como aliás sucede em geral com os textos de Ibsen. Especialmente quando falamos de um dos seus textos de final de carreira, onde encontramos um escritor maduro, seguro e desafiador, ao mesmo tempo que menos susceptível de se preocupar com o publico que o assiste. “O seu texto exige grandes actores, capacidade de análise, compromisso com um teatro corajoso, nada condescendente nem comercial, requer do seu público uma predisposição para uma viagem interior.”, diz Carlos Aladro, encenador espanhol, convidado por Luís Miguel Cintra.

O seu texto foi servido, sem dúvida, por grandes actores, ou não fosse Luís Miguel Cintra o próprio Construtor Halvard Solness, secundado de perto pela regressada Beatriz Batarda no papel de Hilde. Fosse qual fosse o desempenho geral, colectiva e individualmente, Luís Miguel Cintra, por si, tornava essencial assistir a esta peça, como aliás é seu costume. Luís Lucas é boa muleta nas cenas em que intervém, José Manuel Mendes tem o peso da experiência a seu favor, Beatriz Batarda destaca-se um pouco, em parte graças ao protagonismo de que dispõem e os demais limitam-se a picar o ponto, o que, no que à Cornucópia diz respeito, é pouco menos que um bom elogio.

É, em grande parte, graças a este trabalho de actor, que a peça se torna realidade tão perceptível para nós, num texto que caminha numa linha divisória entre o real e o sonhado. Se por um lado, a descrição da pequena burguesia de final de século, os dramas quotidianos repletos de silêncios ou as pequenas traições e mentiras são atestado de actualidade social, por outro a história de Solness e Hilde, uma rapariga que o procura dez anos depois de uma estranha promessa, transporta-nos para o campo do onírico, do sonho e do real. O mesmo campo dos castelos de sonho que ambos procuram e onde sonham viver.

Há uma grande proximidade entre este texto de Ibsen e A Gaivota, de Tchékov. Primeiro, no ambiente que é criado, na caracterização social e burguesa, contantemente retratado de forma cinzenta, marasmática e desprovido de esperança. Segundo, o conflito geracional e o medo do novo, que na peça de Ibsen se manifesta entre Solness e o jovem desenhador Ragnar Brovik, e na peça do russo entre Treplev e Trigorine. Terceiro, o formato base do texto. Enquanto Tchékov usa a Literatura como pano de fundo da luta geracional, Ibsen aproveita-se da Arquitectura, sendo que o último explora melhor o seu tema, levando-o ao limite da metáfora e enriquecendo-o com preciosos trocadilhos e nuances.

Retomando a descrição de Carlos Aladro, e apesar das dificuldades que o mesmo descreve, estávamos preparados para a referida viagem interior. E a mesma acontece, sejamos sinceros. Mas, e este será o principal problema desta versão, a peça nem sempre se torna apelativa, nem sempre cativa, mantém o espectador algo distante, o que em parte é opção do encenador. Num texto tão denso, apesar de actual e próximo, tornava-se necessário prender mais o espectador. Não obstante, a encenação de Aladro é eficiente e possuidora de alguns pormenores de grande beleza estética, bem como a cenografia de Cristina Reis, que aposta na luz como papel principal. O Constutor Solness, na versão do Teatro da Cornucópia, está em cena no Teatro do Bairro Alto até 4 de Novembro.

Título: O Construtor Solness
Autor: Henrik Ibsen
Encenação: Carlos Aladro
Elenco: Luís Miguel Cintra, Teresa Sobral, Beatriz Batarda, José Manuel Mendes, Duarte Guimarães, Sofia Marques e Luís Lucas.

5 comentários:

Anónimo disse...

a relação entre esta peça e a arquitectura...?

Gustavo Jesus disse...

É de facto uma abordagem interessante ao texto, o da metáfora entre a arquitectura de Solness e o seu percurso de vida, por exemplo. Toda a peça tem na arquitectura um fundo bem explorado, é verdade, e tal aspecto contribui sobremaneira para o enriquecimento do texto (e para torná-lo mais denso). Contudo não me parece o aspecto mais importante da peça, muito menos desta versão, sendo ainda que todos os textos criticos deste género têm que, forçosamente, sofrer cedências. Não explorar essa abordagem foi a minha. Para uma melhor e mais abrangente exploração do tema, recomendo o artigo que o suplemento Y dedicou ao tema.

Anónimo disse...

G,

Concordo com a tua resposta ao "famoso" anónimo. De facto, a peça tem essa estreita relação com a arquitectura que, provavelmente, a torna distinta mas acho que esse não é o alicerce maior da obra-prima.
No entanto, acho que devias ser mais explícito quando dizes "nesta versão". No post, por exemplo, não percebo porque dizes que peça não cativa nesta versão. Não percebo porque é que achas que o espectador está distante.

Gustavo Jesus disse...

Quem vê a peça, facilmente percebe que não é uma peça fácil, no sentido de se aceder ao texto enquanto espectador. É um texto filosófico, denso, intrincado, com piadas, metáforas, muito pensamento, muita teoria sobre relações. Mesmo sendo uma realidade relativamente próxima, não há uma proximidade entre o texto e o espectador. Dá a impressão que Ibsen, num estado tão avançado de depuração artistica, preferiu a concretização das suas ideias à explicação destas ao público. Por outras palavras, estava-se nas tintas (expressão curiosa) se percebiamos tudo ou não. Repara, para me explicar melhor, como, por exemplo, em Á Espera de Godot, um texto surreal e que à partida nos distanciaria mais, o Beckett consegue criar uma espantosa proximidade com o espectador / leitor. Como não consegue, porque prefere as metáforas e reviravoltas textuais, no Endgame ou no Há dias Felizes. Tudo isto para provar que há textos que, per si, se mostram dificeis de cativar o público, categoria essa onde me parece que se encaixa facilmente O Construtor Solness. É aí que entra a Companhia que interpreta a peça. Interpreta num sentido de arte representativa e interpreta no sentido de "tradutor" do texto. Não nos esqueçamos que a maioria das pessoas não leu O Construtor Solness antes de ver esta versão da Cornucópia (que, desde já aproveito para referir, salvaguardando algum possivel malentendido, me satisfez bastante na generalidade). O que a encenação de Aladro me transmitiiu foi uma incapacidade de comunicar com o espectador. Uma grande sensibilidade artistica (no final, esteticamente muito interessante; no jogo de cores da caracterização; na maneira inteligente como se percebe que deu liberdade criativa aos actores) mas uma má capacidade de introduzir o espectador no texto, de o prender, de o cativar, um pouco à moda do famoso trecho do Saint-Exupery que ouvimos ad nauseum. Dou um exemplo. A opção de ler a nota introdutória de cada acto, em que os actores despiam claramente a pele de personagem para ser um actor que recita, se bem que artistica e literariamente me atraia ligeiramente, desvirtua o conceito de realidade teatral que, a meu ver, aquela peça precisava como de pão para a boca. Tal como me parece que era possível tornar a encenação mais real, mais verosímil, e menos teatral. A questão, agora, seria saber qual a intenção do encenador. Deliberadamente afastar as pessoas e confrontá-las com o texto, estilo estaladão na cara suavizado; ou fazê-las sentir, naquele par de horas, parte de um universo que Ibsen criou. Nenhuma delas está errada, mas cada um tomará a sua como certa.

Anónimo disse...

Não concordo muito contigo na classificação que fazes ao texto do Ibsen. É uma grande obra com mais de um século logo não é uma conversa de café (sem querer desprestigiar todas as conversas de café). Mas eu não li previamente o texto e não senti que tivesse de fazer um grande esforço para o acompanhar. Aliás, acho o primeiro acto perfeito no modo em que tudo nos é apresentado. Ibsen consegue expor toda a história de Solness e as personagens que o rodeiam com uma clareza que a mim me satisfez bastante.

Quanto à encenação continuo sem te perceber. Não entendo quando dizes que o conceito de realidade teatral é desvirtuado e logo a seguir afirmas que era possível tornar a encenação menos teatral.
Também não percebo o que é, naquele objecto artístico, uma encenação mais real e verosímil.