
Há algo de Tcheckoviano em Revolutionary Road. Começa com a adaptação do romance de Yates, numa história de cinzentismos escondidos, de solidões interiores e de isolamentos face à sociedade. Como no teatro do dramaturgo russo, há mais no que se diz para além das palavras. Umas vezes há revolta, noutras angústia, na maior parte delas conformismo. Ou, nas palavras da personagem de Michael Shannon, "Hopeless emptiness. Now you've said it. Plenty of people are onto the emptiness, but it takes real guts to see the hopelessness". Parece ser este o tema central do filme de Sam Mendes. Os subúrbios americanos, a formatização - exercício extremo do método de produção implementado por Ford no princípio do século passado -, e o sonho americano virado do avesso. Não é a primeira vez que vemos este tema focado. Primeiro lembramo-nos de As Horas. Os subúrbios são os mesmos, os desesperos semelhantes. Mesmo a maneira de focar tudo isto é, o que chega a ser compreensível, semelhante. Com os mesmos tempos, as mesmas opções de banda sonora, o mesmo desenrolar face a uma depressão que se antecipava. Vem-nos à memória também Beleza Americana - sim, "o" filme de Sam Mendes - na forma como se retrata a revolta contra toda esta opressão equalitária de uma sociedade de fachada. Spacey era um revoltado irónico que se libertava, Winslet apresenta-se mais como alguém que luta contra um mundo que a domina. Beleza Americana entusiasmou-nos, Revolutionary Road emociona-nos. Como se a meio do caminho tivéssemos perdido a esperança. (E entretanto lembramo-nos ainda da série Weeds, e como ainda é possível ter sentido de humor ao olhar para as casas repetidas dos subúrbios).
E, ao falar em perder a esperança, vem-nos à memória que não é a primeira vez que encontramos Di Caprio e Winslet juntos num ecrã. Talvez já nos tivéssemos perguntado o que teria acontecido a esse amor mítico se Di Caprio não tem caído, enregelado e morto, pelas águas frias e repletas de destroços de um barço. É este retrato pós-Titanic que Revolutionary Road pinta, porque o sonho do casal chega a ser indiferente - é a presença de um sonho e o destroçar do mesmo que nos importa. Não é tanto sobre aquele casal, os Wheeler, de que falamos. É de relações. É de pararmos um dia e olharmos em volta, cheios de interrogações. O que faz de mim especial? Em quem me tornei? Sam Mendes responde com crueldade e alguma beleza. Mesmo revoltando-se, o destino está traçado e é trágico, quando consciente. A sociedade é absorvente e a maquinaria imparável. E, já que voltamos a Mendes, finalmente deixou de ser um homem de um filme só - desconsiderando grande parte da sua obra (menor) e julgando apenas Beleza Americana. Não só pelo seu filme, mas pela forma como deixa que o filme não seja seu - quanto menos de autor, melhor o resultado em Revolutionary Road. Daí a força que absorvemos das discussões entre Di Caprio (cada vez menos menino bonito) e Winslet (entre Revolutionary Road e O Leitor, prova cabal de uma actriz). E daí a força que sorvemos de Michael Shannon, nomeado para melhor actor secundário (e com que justiça receberia o óscar), uma espécie de buraco negro que aspira todas as atenções e tensões para si quando surge. E, na consciência da personagem de Shannon, voltamos ao princípio. Ao desespero de percebermos em quem nos tornámos. E à depressão de entender que todos à nossa volta se tornam em nós próprios, cada vez menos individuais. Quando o melhor som de um casal é o silêncio, algo vai mal no casamento.
Realizador: Sam Mendes
Elenco: Leonardo DiCaprio, Kate Winslet, Kathy Bates e Michael Shannon.
E.U.A., 2008.
Nota: 7/10
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