segunda-feira, 11 de maio de 2009

Menina Júlia




Ao princípio, ansiamos com medo que um cenário tão composto se imponha sobre os actores, mas rapidamente descobrimos que, apesar de completo, está ali mais como paisagem do que suporte. É, no fundo, uma homenagem ao naturalismo - registo em que decorre a peça e ao qual se dedicou, até certa altura, August Stringberg. É naquela cozinha, situada simbolicamente a meio caminho dos quartos dos senhores e da festa dos empregados, que decorre toda a acção de Menina Júlia. Beatriz Batarda é a menina Júlia, acabada de romper o seu noivado, e que decide não acompanhar o pai numa viagem para participar na noite de S. João, a festa dos seus empregados. João, o criado de seu pai, e a sua noiva Cristina compõem o resto do elenco principal. O enredo desenrola-se apartir da oposição da vontade desenfreada e mimada de Júlia e a raiva mal contida de João. Torna-se difícil perceber quem manipula quem no jogo de sedução que se desenrola entre os dois e que, desde o princípio, tem contornos fatalistas. Nem sempre se torna claro é quem o personagem fatalmente caído em desgraça, por muito que pensemos que, em boa verdade, serão todos.
A menina Júlia de Batarda é insegura - mas falsamente senhora de si -, provocante - mesmo quando não é ela que comanda - e mimada. A construção de Beatriz Batarda sobre estes caminhos é inteligente mas arriscada. Uma menina Júlia instável e volátil, quase a resvalar para a bipolaridade. A opção por uma míuda em corpo de mulher, que vagueia entre o choro e o riso com facilidade não poderia ter sido feita por melhor mão-de-obra e as transicções são notáveis. O perigo, como quase tudo, vem do excesso, que retira o naturalismo que a encenação, a peça e a personagem exigem. Destaque para a decadência final de uma menina Júlia que se tenta convencer a si mesma, enquanto convence os outros, de que tudo está bem. Beatriz Batarda é uma daquelas emblemáticas actrizes que ficarão conhecidas, sem qualquer dúvida, por não saber representar mal. O risco, como disse Garcia Escudero de Marlon Brando, é quando o espectador, ao vê-lo, "não puder esquecer-se nem por um momento do bom actor que é". Bom contraste com a fragilidade - aparente ou real, só a peça o dirá - da menina Júlia é a dimensão fisica da personagem de Albano Jerónimo. Se do contraste e jogo entre os dois vive a peça, essa é a parte forte do prato servido. Fisicamente a dupla faz sentido, os diálogos são vivos e crescem naturalmente em direcção ao final. É feito de timings perfeitos a crispada relação sexual e social de criado e patroa.
O que mais impressiona no texto de Strindberg é a sua actualidade. Escrita em 1888, Menina Júlia apresenta uma frescura e contemporaniedade nos diálogos que faz inveja a qualquer peça dos últimos 20 anos. O ritmo é certeiro e a temática, naturalista no género, é construída de forma desenvolta e estimulante. Como se Strindberg, em vez de precursos e clássico, fosse um estudioso actual do teatro. Para além disso, enquanto peça naturalista com clara exposição social, Menina Júlia é completa e complexa. O jogo de traições, motivações e intenções é pouco claro mas vai-se focando enquanto as personagens se revelam. Entre a menina mimada que gosta de brincar com o fogo e o criado castrado pela sua situação social está Cristina, a empregada sóbria e conservadora, ciente do seu papel e da sua condição. Que ninguém saia bem de toda a Menina Júlia é expectável. Que a parte menos afectada seja uma criada que repele qualquer ambição e se contenta, é sintomático. E preocupante.
Em cena no Teatro Nacional D.Maria II até 29 de Maio, na Sala Garrett.
Título: Menina Júlia
Autor: August Strindberg
Encenação: Rui Mendes
Elenco: Beatriz Batarda, Albano Jerónimo e Isabel Abreu.

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