segunda-feira, 22 de outubro de 2007

35mm #4 - Touro Enraivecido




So, for the second time, the Pharisees summoned the man who had been blind and said: / "Speak the truth before God. / We know this fellow is a sinner." / "Whether or not he is a sinner, I do not know," / The man replied. / "All I know is this: / Once I was blind and now I can see."


John IX, 24-26 / the New English Bible


Felizmente, as grandes obras de arte não se definem como tal por gostos pessoais. Definem-se pela capacidade de influenciar a arte de futuro e perceber a do passado. Tal como o mundo da música Pop nunca mais foi o mesmo depois dos Beatles ou como o conceito de representação mudou depois de Brecht. Essa é, no fundo, a grande fortuna dessas mesmas obras de arte. Poderão elas sensibilizar, tocar, mover, não deixar indiferente ninguém, mas, acima de tudo, elas mudam. Ou as pessoas mudam por elas.

O Touro EnraivecidoRaging Bull, no original – é exemplo de exame disso mesmo. Não se trata, de todo, de uma obra que a todos agrade. A sua crueza, a violência ou a temática do mundo do boxe, entre outros, fazem do filme um objecto contestado. No fundo, como Scorsese, seu realizador. Amado por alguns, odiado por outros tantos, mas respeitado por todos. Parecerá uma máxima clichezada de arrogância masculina mas, mais uma vez, isso assenta-lhe como uma luva. São assim, também, os seus filmes. Violentos, masculinos e ordinários. Pelo menos os melhores.

Mas é por trás desta violência que se esconde a sensibilidade brutal que o filme pretende transmitir. Não com as mensagens subliminarmente escancaradas de moral vigente que imperam no cinema actual, mas com uma caracterização humana, no sentido mais primitivo e visceral da palavra. Há, por trás da brutalidade desportiva, uma brutalidade emocional, um conter de emoções, sempre mais expressas num papel masculino, como o cinema de Scorsese sabe fazer melhor. Há solidão, incompreensão e melancolia. Mas há, no lado mais negro, ciúme, raiva e violência, tudo tão primitivo como são os instintos do homem.

Adaptação cinematográfica das memórias de Jake La Motta, Touro Enraivecido é, muito justamente, tido como um dos maiores exemplos de representação de toda a história do cinema. Galardoado com o Óscar de Melhor Actor Principal, Rorbert De Niro interpreta este boxer, a sua ascensão e queda, o seu percurso pessoal, mas essencialmente os seus problemas mais íntimos, as suas mais interiores preocupações. E, para além de todo aquele trabalho físico, – que é aliás constantemente citado como modelo em trabalho de actor – há um muito maior desafio interior que é conseguido. Se impressionam as variações de peso a que o actor se submeteu para tornar credível o seu envelhecimento, mais impressiona ainda a sua capacidade para tornar perceptíveis os sentimentos de Jake, sem nunca poder recorrer a discursos introspectivos ou melodramas psíquicos. O que Jake é, vê-se no que ele vive. Ou em como vive. É assim que percebemos que, por trás do boxer famoso e ganhador, há um homem perturbado, violento e extremamente ciumento, espécie de Swann do primeiro livro da saga de Proust, desconfiando constantemente de todos quantos se aproximem da sua mulher.

Também nomeado, mas não tendo ganho, foi Joe Pesci, inexcedível na contribuição como actor secundário, muleta constante e contraponto físico para De Niro, num trabalho de improviso entre os dois onde se nota a mão de Scorsese, sempre muito trabalhador e confiante no que à Direcção de actores diz respeito. E até nisso, no toque de Scorsese, este filme é chave mestra na sua obra. Porque nos permite perceber a evolução desde Táxi Driver – ainda assim, o seu melhor filme de sempre – a este Touro Enraivecido, e deste para o seu último grande filme, The Departed, passando por Goodfellas. O ciúme enlouquecedor de Jake é irmão da loucura de Travis de Táxi Driver, ainda que no último ela seja mais congénita que adquirida. E mais espectacular, também.

E muito mais havia a ser dito sobre esta obra. Desde o conflito entre Jake e a sua mulher Vickie (Cathy Moriarty), à questão da liberdade dos takes de Scorsese, à realidade brutal dos combates, à forma como estes passam para segundo plano face ao ser (des)humano que se apresenta, à moralidade imoral que o filme esconde, à representação fiel da vida célebre, à ascenção e queda, tão espectacular mas friamente representada. Não sabemos se devemos simpatizar ou não como o protagonista, mas ele (Scorsese) também não parece muito importado com isso. Ele criou uma obra de arte que, como as melhores, é influência e reverência ao mesmo tempo. Nunca nenhum filme sobre o boxe – e todos sabemos como não lhe seguiram poucos – fugiria à alçada deste mestre. Nenhum Rocky ou Cinderella Man, por muitos argumentos que apresentem, conseguiu combater Touro Enraivecido. Porque ninguém manda Jake ao tapete.

Título: Touro Enraivecido
Realizador: Martin Scorsese
Elenco: Robert De Niro, Cathy Moriarty, Joe Pesci, Frank Vincent, Mário Gallo e Charles Scorsese.
E.U.A., 1980

Nota: 10/10

1 comentário:

B. disse...

Pormenor. Dos meus filmes preferidos de todos os tempo.

Outro pormenor interessante. O filme é praticamente autobiografico por parte do Scorsese, ele cresceu naquela época, naquele bairro, com a aquela influência italiana. Além disso, nesta altura, scorsese era viciado na droga, q o estava a destruir, e ele já tinha desistido de fazer cinema. De Niro, seu grande amigo, soube da história, e soube o quanto Scorsese gostava do livro, e ateimou com ele montes de vezes para o fazer, que só ele o poderia fazer. E depois de muita insistência, assim foi, e após muito insistência, fez dos melhores filmes da história do cinema.

O plano inicial com a "Intermezzo" da "Cavalleria Rusticana" da ópera de Pietro Mascagni, é brutal, é mesmo brutal.