sábado, 24 de outubro de 2009

Ifigénia na Taurida


Ifigénia na Táurida, a peça de Goethe em cena na Cornucópia até 1 de Novembro, é uma obra exemplar na forma como sintetiza a época em que é feita e, num âmbito diferente, a companhia que agora a reproduz. Do mais notório romantismo germânico chega-nos a história de Ifigénia, filha de Agamémnon e Clitemnestra, exilada na ilha de Táurida onde vive uma reclusão forçada pelo destino - o seu e o da sua família. É este mesmo destino que traz o seu irmão a esta ilha depois de ter morto a mãe para vingar o pai - posto nesta simplicidade, o caso parece a abertura de um telejornal, mas isso é apenas a prova de que a humanidade não mudou assim tanto nestes últimos milhares de anos. A história de Ifigénia, nas mãos de Goethe, torna-se um case-study do romantismo da altura e, mais, prova-nos como o casamento entre o classicismo e o romantismo, pelo menos no que à dramaturgia diz respeito, é simples e eficaz. Do romantismo, Goethe traz-nos a visão centralizada do mundo. Cada um chora as suas dores. Ifigénia chora a distância da pátria, Orestes chora a sua vergonha e o rei Toas, não chorando, lamenta-se de não possuir Ifigénia. A razão porque Grécia Antiga e romantismo se casam na perfeição torna-se óbvia. Ambos nos remetem para um universo de paixões dramáticas, de épicos amores fraternos, de assassinatos passionais e de emoções extremas. Não há comedimento nem contenção, a nível pessoal. Talvez por isso, aqui mais do que nunca, se misturem deuses, homem e destino.
Esta é a forma do texto de Goethe, um romântico inveterado, no lado bom do termo. O drama de Ifigénia é assim o mote. Na forma, e na expressão desse mesmo drama, Goethe explora esse seu lado romântico. E, de alguma forma, o seu lado datado, preso a um contexto literário da sua época. Mas há uma modernidade, ou antes uma universalidade, no seu texto. Em primeiro, na forma como entende a mulher. Uma das cenas finais é ilustrativa. Enquanto dois homens não se entendem e erguem as suas espadas - mais metafóricas que reais -, é à mulher que cabe ter a sensibilidade do entendimento, o lado não bélico da vida. Ifigénia, aquela que foi salva pela deusa do sacrifício, a sacerdotisa, a sábia, a que sofre mas salva. Esta é a mulher na peça de Goethe. A mulher no meio de homens, beligerantes, errantes, sofredores mas desejosos de imprimir o mesmo sofrimento no outro. Também o papel dos deuses é interessante em Goethe. Mais do que o próprio fado. É a ideia de que homens e deuses não se devem imiscuir. Assim começa a desgraça da família de Ifigénia. Quando o seu antepassado se mistura com os deuses. Como se homem e deus fossem realidades separadas, necessariamente separadas, e cuja mistura é necessariamente prejudicial. Para o homem, obviamente - interessante como esta ideia de Goethe se adequa à discussão que hoje se levanta em torno do Caim de Saramago.
Mas esta é a Ifigénia da Cornucópia. Segundo Goethe, é certo. Mas recriada por Frederico Lourenço, imaginada por Luis Miguel Cintra e interpretada pela regressada Beatriz Batarda. E, curiosamente, a leitura da peça é a mesma. Também a Ifigénia na Táurida, se vista à luza da Cornucópia, é sintomática. Esta recriação de Cintra é paradigmática da forma de interpretar daquela companhia. Por um lado, a principal aposta é na simplicidade. No despojamento, no nu cénico, na pobreza visual. Como se dizendo, concentrem-se no texto, não se distraiam. E, ao concentrar-se no texto, explora o seu romantismo ao máximo. A nível das personagens e do trabalho de actor, acima de tudo na Ifigénia de Batarda e no Orestes de Paulo Moura Lopes - um concorrente de peso na competição da colocação de voz, onde Cintra é campeão. Nestas mesmas personagens nota-se ainda a influência do teatro clássico, de onde no fundo bebe Goethe. O peso da palavra e da voz por oposição ao papel do corpo. Há concessões que se fazem à conta destas escolhas, logicamente. E até o próprio drama, o que mais move o texto de Goethe, tarda a chegar em verdade. Mas quando chega, e que chegue sem que seja preciso praticamente nada para além do texto, a peça concretiza-se. O teatro nem sempre é movimento. Mas é sempre beleza.
Título: Ifigénia na Táurida
Autor: Johann Wolfgang von Goethe
Recriação poética: Frederico Lourenço
Encenação: Luis Miguel Cintra
Cenário e Figurinos: Cristina Reis
Desenho de luz: Daniel Worm D’Assumpção
Elenco: Beatriz Batarda, José Manuel Mendes, Luis Miguel Cintra, Paulo Moura Lopes e Vítor de Andrade.

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