sábado, 19 de junho de 2010

O Rei está a Morrer


Sobre poucos temas se repetirá tanto a arte como sobre o amor e a morte. Sem grande exagero, mais de 90 de toda a criação literária, musical, cinematográfica e teatral, recai sobre este tema. Sobre o amor já se disse tudo. No rádio, todas as músicas parecem baladas de dor de corno. No cinema, o par acaba morto e separado, ou apaixonado e eternamente feliz. O amor tornou-se chato, porque todos falamos dele e todos dizemos o mesmo. E depois, há a morte. De que ninguém nunca soube falar com o mesmo à vontade ou com a mesma destreza. Sim, há grandes textos sobre a morte, mas esta não aparece repetida diariamente em todas as rádios, todas as salas de cinema e todos os palcos. Porque é dura ou porque não sabemos lidar com ela, a verdade é que tendemos a virar a cara ao problema. O Rei está a Morrer, de Ionesco, é uma das mais inteligentes abordagens ao assunto. Raras vezes se escreveu tão bem o que é morrer.

A peça, encenada por João Mota no Teatro da Comuna, começa por abrir o jogo e pôr as cartas na mesa. O rei vai está a morrer, vai mesmo morrer no fim do espectáculo, e peça é isso mesmo, a fastidiosa e dolorosa espera pela morte do rei Berénger. A morte é inevitável, todos os sabemos, mas tudo parece bonito quando falamos de uma data distante, longínqua e incerta. Ou, como dizia Woody Allen, 'I'm not afraid of death, I just don't want to be there when it happens'. A peça de Ionesco é uma tragicomédia, e com todo o sentido. Como o verdadeiro momento da descoberta da morte, como a própria luta contra o inevitável, como o apegamento ao material, a percepção do vazio. Tudo uma tragicomédia. A tragédia na palavra 'tragicomédia' não é trágica, é fria e não nos tenta emocionar. Nós é que lentamente somos forçados a descobrir que a morte é mesmo trágica e decadente. Mas, acima de tudo, ridícula. O Rei de Ionesco luta contra a ideia que vai morrer, convence-se do contrário e vive na ilusão. Na negação. É deste ridiculo fugir que nos fala a peça de Ionesco.

Já a parte da comédia é o melhor de Ionesco. Não por acaso, o dramaturgo romeno é tido como um dos maiores nomes do Teatro do Absurdo, lado a lado com Pinter e Beckett. Em O Rei está a Morrer, o absurdo está em todo o lado. O Teatro do Absurdo tentava mostrar-nos a falta de sentido da vida com textos aparentemente sem a formalidade a que o teatro nos habituara. Em cenários oníricos, com personagens surreais e com construções que nem sempre pareciam quotidianas. Absurdo, como os sonhos. Absurdo, como a vida. O reino desta peça não existe, o rei idem aspas e as personagens que o acompanham na sua corte são tudo menos pessoas reais. Mas a essência, o estar perante a morte, está lá. O absurdo de não saber o que fazer ou dizer perante a morte – porque não há de facto o que dizer ou fazer – está lá. O texto é um dos mais bem conseguidos do género, a encenação de João Mota é de um saber habitual e a interpretação de Carlos Paulo é a chave-mestra que tudo agrega. Raras vezes se escreveu tão bem o que é morrer.

Título: O Rei está a Morrer
Autor: Eugène IonescoEncenação: João Mota
Elenco: Carlos Paulo, Tânia Alves, Ana Lúcia Palminha, Rui Neto, Mia Farr e Alexandre Lopes

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A Cidade


Ao contrário do que nos habituou, a Cornucópia apresentou-nos, numa nova co-produção com o São Luiz, uma peça de Aristófanes. Não que seja estranho que a companhia visite o teatro clássico - se há alguém que o tem feito, e sistematicamente bem, foram eles - mas é a forma como nos apresentam a esse teatro desta vez que nos espanta. Habituados que estamos ao rigor que o clássico exige e às poucas cedências a que costumam dar azo, parecia-nos quase natural que o teatro grego tivesse sempre algo de distante, de pouco próximo. O que era profundamente natural e causado apenas pela distância do tempo e pelas alterações culturais que essa mesma distância obrigava. Havia quase sempre, e não apenas nesta companhia, a sensação de que aquele teatro era muito bom mas, para a maioria, muito longe. Daí que A Cidade, conjugação de várias peças de Aristófanes, seja uma abordagem arrojada e dificíl. Ao trazer as peças de Aristófanes para a nossa linguagem, isto é ao modernizá-las, tem-se a vantagem óbvia da adesão e compreensão do público, mas arrisca-se a perder a essência do texto em modernimos excessivos ou, pior, a banalizá-lo.
Se é certo que a opção nem sempre resulta, é ainda mais certo que resulta quase sempre e que, fruto de um brilhante adaptação, cria momentos de verdadeira ligação entre o texto e o público, que provavelmente de outra forma não existiriam. Essa é a grande vitória de A Cidade, ter conseguido que um público não habituado a estes textos se ri-se de Aristófanes com naturalidade e com o mesmo coloquialismo com que se riria de uma comédia moderna. Para além de Luis Miguel Cintra, para além da tradução, para além do elenco, o grande culpado disso é Aristófanes. Os textos que nesta peça se compilaram falam de um elemento comum a todos os tempos. O homem a sociedade. Ou talvez apenas da socieade em si. Da forma como se constroí e, na maioria dos tempos, da forma como se destroí. Em A Cidade há guerra de sexos, há sexo, há intriga politica, há aproveitamento, há todo o tipo de construção social que ainda hoje é base para a grande maioria das comédias que, com maior ou menor qualidade, por todo o lado surgem. Isto prova tanto que as peças de Aristófanes são de uma modernidade que a tradução apenas evidenciou, mas essencialmente que o homem, em mais de dois milénios, pouco mudou.
Mas não foi apenas nesta adaptação pouco usual que Cintra arriscou. Há, em A Cidade, um compêndio de referências a géneros e a formas de fazer teatro - algumas até estão longe daquilo a que ele se tem debruçado - numa quase exposição sobre o tema - se bem que seja verdade que a duração da peça a isso se permite. A uma comédia mais fisica segue-se o musical, à revista opõe-se uma mais séria alegoria final, à distância do grego clássico contrapõe-se o calão de hoje. Não é um teatro de contradições, é um teatro de dialécticas. E talvez seja nesta linha que se entenda como Bruno Nogueira, Maria Rueff ou Gonçalo Waddington encaixam tão bem num elenco batido na contracena em comum como Márcia Breia, Luis Lima Barreto ou Ricardo Aibéo. Uma palavra para Bruno Nogueira, aquele que, de todos, provavelmente menos currículo e experiência de teatro teria mas que nunca o demonstrou. Pode-se argumentar que aquele é o seu registo, a comédia. Mas não é menos verdade que ser um actor é aquilo que ele fez. Usar o corpo em teatro é aquilo, perceber o registo e fazê-lo funcionar é aquilo. Outra palavra para Márcia Breia, pela estupenda arte de estar em palco sem estar, ou de estar constantemente em palco, ou ainda de monopolizar o olhar do público pela simples presença. Para Nuno Lopes, as palavras não chegariam. Uma vez mais.
Título: A Cidade
Autor: Aristófanes
Encenação: Luis Miguel Cintra
Elenco: Bruno Nogueira, Carolina Villaverde Rosado, Dinarte Branco, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Gonçalo Waddington, José Manuel Mendes, Luísa Cruz, Luis Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Márcia Breia, Maria Rueff, Marina Albuquerque, Nuno Lopes, Ricardo Aibéo, Rita Durão, Rita Loureiro, Sofia Marques e Teresa Madruga.

Ouviste falar dos Morgans?


Não é por ser a história cliché de um casal em crise que é obrigado a conviver em situações adversas e que redescobre o amor. Não é por ser mais uma comédia romântica, igual em formato, realização e sensaboria a tantas e tantas que constantemente emigram do lado de lá do Atlântico para deste lado tentar amealhar mais um pouco à conta da necessidade de happy-endings em que vivemos. Não é pela comédia batida e repisada das situações apalhaçadas que nunca teve muita piada a não ser para quem está desesperado por um motivo para rir. Não é pela repetição monótona, e ligeiramente racista, do confronto entre o casal da cidade e as pessoas rurais. Nem é pela repetição monótona, e ligeiramente imbecil, do confronto entre o casal da cidade e o meio rural. Nem é por Hugh Grant em piloto automático, com a confiança de quem fez da comédia-romântica um modo de vida, mas com o sem vontade de quem acorda mais um dia para ir para o mesmo trabalho enfadonho de sempre. Nem é por Sarah Jessica Parker, uma inexistência neste filme que porventura achou seria uma continuação sem chama da escritora cosmopolita que a celebrizou. Não é por nada disto em concreto, nem será pela soma disto tudo. É só porque Ouviste falar dos Morgans? não tem qualquer ideia, qualquer intenção ou qualquer identidade. É uma massa amorfa de repetições e de ideias pré-concebidas que, ao longo dos últimos quinze anos, se foram maturando no conceito de comédia-romântica. Não é que seja bom, mau ou qualquer outra coisa. Simplesmente não há nada em Ouviste falar dos Morgans?.
Título: Ouviste falar dos Morgans?
Realizador: Marc Lawrence
Elenco: Hugh Grant, Sarah Jessica Parker, Natalia Klimas e Mary Steenburgen.
E.U.A., 2009.
Nota: 1/10

domingo, 24 de janeiro de 2010

Um Profeta


Algures a meio caminho entre o filme de máfia e o filme prisional, Um Profeta, de Jacques Audiard, consegue, apesar do estereótipo, estar para além do filme de género que essas duas condições impôem. Não é por fugir deles. Enquanto retrato prisional, Um Profeta é fiel, duro e cruel, como se lhe pede. A primeira meia hora é de digestão demorada. Mas, graças a Audiard, a violência que nos é transmitida, não é a dos filmes americanos onde se viola, agride e espanca graficamente. Isso também lá está, mas a principal violência é a que não se vê, a que se vive sozinho na cela. A violência da antecipação, da espera, da incerteza. Essa é a violência que Audiard filme e com que nos apresenta ao seu registo de filme de prisão, até entrarmos no modo "as coisas estão a correr bem" de quem percebe o funcionamento interno da prisão e que Audiard faz seguir em modo fluido e animado.
Mas há também Um Profeta, o filme de máfia. E aqui Audiard é de novo, antes de mais nada, inteligente. Não é inovador - até porque dificilmente alguém dirá alguma coisa nova sobre a máfia que os últimos 20 anos de audiovisual não tenham explorado - nem é excessivamente académico na forma como aborda a máfia, dentro e fora da prisão. Foca-se, e foca-nos, naquilo que realmente lhe interessa, nos conflitos étnicos e raciais. Porque, no fundo, parece dizer-nos Audiard, a violência prisional e a violência da máfia, a vivência de cada uma delas, não é muito dispar. O que há de novo em Um Profeta é esta consideração do que é a multiplicidade étnica na violência. De como o mundo se adaptou ao que a sociedade pós-terrorismo global instaurou como estabelecido. Ou, talvez, de como o mundo sempre foi assim. De um lado os muçulmanos, do outro os corsos, do outro os africanos. E esta, queiramos quer não, é a era dos muçulmanos.
E tinhamos tudo para ter um filme profundamente realista. Na temática, no género, na realidade social. Até no tipo de heroí. Ambíguo, moralmente dúbio, esforçado, lutador e ligeiramente estereotipado. Mas, e isto é o melhor do filme de Audiard, Um Profeta é ao mesmo tempo um filme de grande poesia e com pormenores de cinema que a parte social em si muitas vezes esquece. Sem abdicar do realismo, sem abdicar da dureza, Audiard oferece-nos ao mesmo tempo um fantasma que ensombra a personagem principal - bonita personificação da metáfora que tantas vezes se usa - ou uma capacidade profética inexplorada por Audiard mas que não nos transtorna, apenas nos encanta. Nada está a mais no filme de Audiard. Nem se diz a mais - deixando-se ao expectador a capacidade de pensar - nem se diz a menos - e se cai no vazio dos planos sem sentido. Um Profeta é um filme de quem sabe o que está a fazer, melhor, de quem sabe o que quer fazer e, melhor ainda, de quem não nos quer impor nada senão a realidade, onde dificilmente há bons ou maus. A espaços, Um Profeta é também um óptimo filme sobre o acto de aprender, sobre a religião ou sobre o poder. Mas isso é para outras leituras, para quando, como o filme pede, nos dermos ao trabalho de ver e rever.
Título: Um Profeta
Realizador: Jacques Audiard
Elenco: Adel Bencherif, Hichem Yacoubi, Niels Arestrup, Reda Kateb, Tahar Rahim.
França, 2009.
Nota: 8/10

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Andando


Andando é um daqueles raros filmes onde, de uma conjuntura muito particular e específica, se consegue retirar a sua universalidade. Fazer a sinopse de Andando, como quase sempre acontece, é algo de ingrato. Porque limitamos o filme ao seu enredo - como se ver o filme fosse saber o fim - e porque, neste caso, a história é o que menos interessa. Seguimos uma família japonesa que se reúne num almoço por ocasião do 15º aniversário da morte de um deles. O enredo, e até as personagens em si, são o que menos interessa. Temos o pai, austero e empedernido nas suas convicções, a mãe, aparentemente dócil para todos, e o filho que vem de longe com a nova mulher. A magia de Andando surge quando todos estes, entre outros, se juntam. O que Hirokazu Koreeda consegue filmar é o que é comum a milhares de famílias, o que é intrínseco a essa condição, apesar de o filmar conjunturalmente nesta familiar em particular.
Teremos esta visão cultural do japão, teremos o poder da comida no ecrã, teremos o sentido de humor que por vezes surge, mas o que nos fascina em Andando é como aquilo poderia ser qualquer um de nós. No que se diz e no que não se diz, no que ficou por dizer e no que se disse sem ser dito. Nos silêncios mais ténues, na troca de olhares entre duas pessoas nas costas de alguém, nas falas com duplos sentidos, nos cuidados que se têm nas relações familiares. Nos hábitos, na forma de funcionar enquanto família, na hierarquia, no que se espera de cada um e de como é difícil não corresponder a essa expectativa. Andando é a síntese do nome família, como uma definição de enciclopédia para o termo.
Um apontamento também para o peso da ausência, aqui expresso no filho em honra de quem se celebra o almoço. A ausência é feita de silêncios pesados, de silêncios que têm de ser quebrados, de palavras que já não se podem dizer, de superstições, mas, especialmente, dos mecanismos que se criaram para nos defendermos dessa ausência. Como o ódio. Que, nas palavras da mãe, torna mais fácil suportar a dor. Dificilmente um filme poderia ser mais especifíco e global ao mesmo tempo.
Título: Andando
Realizador: Hirokazu Koreeda
Elenco: Hiroshi Abe, Yui Natsukawa e You.
Japão, 2008.
Nota: 8/10

Ágora


No final do século IV, o território de Alexandria encontra-se em tempos de grande mudança e vive imerso em conflitos e ideias opostas que convivem dentro de si. O filme de Amenábar, como a época que descreve, é multifacetado, discute várias problemáticas e levanta ainda mais questões. Ágora parece ser várias coisas mas, ao longo da sua duração, vai-se desmascarando lentamente até não ser nenhum dos lugares-comuns que esperávamos mas um filme que abraça essa complexidade que a época exigia. A princípio esperamos mais um filme de época, com histórias de amor e histórias de guerra, suportado pela caracterização hollywoodesca do género. Mas o amor que vemos não corresponde aos cânones do filme de género e a guerra que se trava é quase sempre mais psicológica ou teológica. Depois parece-nos um filme religioso, mas também aí se mostra mais um filme sobre religões e menos um filme religioso, preocupando-se mais com o mal de fundo que do fanatismo advém do que com o fanático em si.
No centro do enredo, Hipátia, a filósofa, e alguns dos seus mais chegados alunos. Hipátia é o ponto de partida e o ponto de chegada deste filme, que não é sobre ela. É o ponto de partida enquanto professora, enquanto símbolo da sabedoria e da igualdade. E é a ela que chegamos no fim, já vencida, quando o fanatismo e o poder das multidões se torna mais forte que a racionalidade, o saber e a tolerância. Esta é a história de Hipátia, mas é a mais a história da tolerância e, principalmente, da falta dela. Há tanta crítica em Ágora à Igreja Católica como ao Islamismo ou a alguns regimes ditatoriais. Que, por exemplo, a Igreja Católica se tenha insurgido contra o filme é um exemplo claro de, segundo a expressão popular, uma carapuça que serviu. Esta é a beleza de Ágora, uma obra que foge à facilidade de fazer um filme de época baseado nas premissas romântico-bélicas do costume e, pelo contrário, se debruça verdadeiramente no tempo que pretende retratar. O dito que tantas vezes se ouve de que a história se repete e a função do cinema histórico de retratar o presente estão ambos explicados academicamente no filme de Amenábar. Mesmo que algumas personagens-tipo sejam demasiado óbvias ou que Amenábar se deslumbre quando volta a Hipátia. Há de haver tempo para um filme sobre Hipátia, a matemática, mas, e por muito que Amenábar tenha tentado encaixar esta à força, este é um filme sobre o tempo de Hipátia, o tempo da intolerância religiosa.
Título: Ágora
Realizador: Alejandro Amenábar
Elenco: Rachel Weisz, Max Minghella e Oscar Isaac.
Espanha, 2009.
Nota: 7/10

Sherlock Holmes


O Sherlock Holmes de Guy Ritchie despensa sinopses banais e conta-se rapidamente como uma adaptação cool do personagem de Conan Doyle. Acrescenta-se acção aos molhos - às vezes demasiada, é um facto -, transforma-se Watson num parceiro para além da intelectualidade e as aventuras de Sherlock Holmes, de repente, podiam ser com Bruce Willis ou Will Smith. Mas ainda bem que o não são, porque é em Downey Jr. que o filme tem os seus melhores momentos. Apesar de tudo isto, Ritchie não perde a essência dedutivo-lógica de Sherlock Holmes mas, pelo contrário, exponencia-a, fazendo dele quase um super-herói. O filme passa-se no óbvio ritmo rápido dos filmes de acção, deixa as costumeiras piscadelas de olho à sequela e contém tudo o que é académico num blockbuster e ajuda a atingit o máximo de público possível. Nomeadamente os nomes sonantes. Robert Downey Jr. é um Holmes amargurado mas de extremo sentido de humor, Jude Law é o braço direito Watson e, embora a sua relação lembre a dupla House-Wilson da série televisiva, a dupla resulta em pleno. De tal forma que o filme chega a viver do diálogo entre os dois, enquanto esperamos que a acção ao desbarato finalmente passe.
A londres enegrecida e cinzenta é engraçada mas já foi melhor feita - Sweeney Todd, por exemplo - e adivinha-se cedo que o filme acaba em happy ending à última da hora, como convém para agradar e sair-se da sala satisfeito. Algumas cenas de acção são justificadas, outras apontam ao rídiculo, mas nenhuma justifica que o filme se prolongue tanto, especialmente quando estava a ir tão certinho e podia acabar em beleza uma boa meia hora antes. Ainda assim, a verdade é que este é um blockbuster assumido, sem grandes pretensões para além dessas, com sentido de humor, de estilo e de ritmo. E, como tal, funciona perfeitamente. Às vezes o cinema é mesmo isto. Só mais um filme de entretenimento, que neste caso até nem é mau entretenimento. No meio de tanta coisa que decide sair de Hollywood, do mal o menos.
Título: Sherlock Homes
Realizador: Guy Ritchie
Elenco: Robert Downey Jr., Rachel McAdams, Jude Law e Mark Strong.
Reino Unido, E.U.A e Austrália, 2009.
Nota: 6/10

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O Painel da Verdade

Com algumas excepções, quase não há uma tradição dramatúrgica em Portugal, no que aos grandes palcos diz respeito. O reportório é variado e a oferta muita, mas não há espaço para a criação de textos. Há muitas adaptações, pega-se em textos clássicos, contemporâneos ou modernos, às vezes até nos chega um ou outro texto muito recente e galardoado no estrangeiro. Existe um ou outra iniciativa - vêm-me à memória de repente o Maria Matos - mas o palco consagrado nacional não deixa espaço, salvo muito pontuais excepções - desta vez surge-me o nome dos Artista Unidos - para o escritor de teatro português. Daí que o teatro amador, para além da função pessoal e da função de angariação de públicos, possa servir para a experimentação de textos ou para o estímulo à criação dos mesmos. Neste sentido - como em todos os outros atribuídos ao teatro amador - a obra de Álvaro Cordeiro é consistente. Há um género em que se move mais à vontade mas, pontualmente, brinda-nos com uma súbita mudança de rumo.
O Painel da Verdade é um desses casos. Encomendado a propósito dos 200 anos da Igreja de Benfica, a peça traz-nos uma espécie de biopic de Pedro Alexandrino de Carvalho, mestre e pintor influente no Portugal do século XIX. Uma peça tripartida entre três personagens-tipo. A do pintor, artista consumido pela sua própria obra e que chega ao fim da vida constatando a sua falha para com os seus próprios desejos artísticos; a do popular, boçal, divertido, simples e familiar directo do português tipico que Bordalo Pinheiro haveria de imortalizar; e a simples mas honrada mulher do povo, mistura entre a cultura e o povo, representada nos outros dois. A fórmula da peça não é nova. Um drama histórico, localizado na Benfica de 1809, que por um lado nos conta a história do pintor e por outro nos vai conjecturando na sociedade de então, nos costumes de então, no Portugal de então. Em Hollywood, perceberam que funciona há largos anos.
O que é interessante em O Painel da Verdade é o conceito das personagens em si, porque só com três personagens se constroi essa dicotomia cultura-povo, rico-pobre, que esses tais filmes de época de Hollywood levam horas e dezenas de personagens a transmitir. A tese (o pintor), a antítese (o popular) e a síntese (a mulher do popular). Não é preciso mais que isto. Paulo Vaz é o pintor em causa, numa personagem ingrata porque não se dá a extravagâncias ou a grandes elaborações. Extravagante é o mínimo que se poderá dizer do zé-povinho caricatural que Vicente Morais interpreta - ao nível do melhor Bordalo Pinheiro. Mercedes Rebelo é segura, como sempre, no papel conceptualmente mais interessante. Interessante porque sintetiza em si a visão da mulher do autor. A mulher como a única capaz de entender quer o culto, quer o humilde, e como a única capaz de realizar a dialéctica entre os dois. É a mulher que em tudo manda e que em todos opera. Como na vida. Naquilo que se disse acima serem as funções do teatro amador, O Painel da Verdade cumpre-as todas. Tem reposição marcada para Janeiro, na Igreja de Benfica.

Título: O Painel da Verdade
Autor: Álvaro Cordeiro
Elenco e encenação: Mercedes Rebelo, Paulo Vaz e Vicente Morais.
Música: Luis Costa da Silva

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O Banqueiro Anarquista


Em cena no Teatro da Trindade de 10 a 13 de Dezembro está O Banqueiro Anarquista. Embora mais conhecido pela sua vertente poética e, dentro desta, pela sua escrita mística e pouco mundana, este texto de Fernando Pessoa é mais um bom exemplar de como a sua obra é vasta, quer na forma, quer no conteúdo. Já em Essência do Comércio e noutros artigos que publicou em vida, Pessoa mostrava ser atento e conhecedor do fenómeno económico. Mas O Banqueiro Anarquista é uma análise muito incisiva sobre a economia, o poder do dinheiro e a banca. E há, por detrás da personagem que Pessoa criou, e juntando vários destes textos, uma ideia clara que se forma sobre as opiniões politicas do escritor - exemplo claro é a sua visão sobre o comunismo, em especial do exemplo russo. Mas, para além do seu valor académico (onde se lê um outro pessoa, diferente do poeta ou ensaísta), para além do seu valor biográfico, O Banqueiro Anarquista impressiona, hoje, pela sua contemporaneidade e pelo espirito de previsão que o texto contém. Ler o texto hoje, à luz da conjuntura económica que se vive, impressiona pela capacidade de Pessoa em prever o que se seguiria, pela ciclicidade com que todo o meio económico se rege e pela repetição dos mesmos erros. Fala-se de dinheiro, do poder do dinheiro, da ilusão do mesmo, da ganância que o mesmo incute e, pior, da desfiguração que o dinheiro cria sobre as pessoas. É difícil não ler O Banqueiro Anarquista como uma crítica feroz a um sistema bancário de corrupção e ambição desmedida, onde o dinheiro, pelo dinheiro, é o grande motor.
A leitura que no Trindade se apresenta, com encenação de Annalisa Bianchi e Virgínio Liberti, é, acima de tudo, honesta. É sincera e humilde na forma como se expõe e se entrega. Desde o cenário, que aproveita de forma exemplar o palco com poucos recursos, até à forma como trabalha o texto, sem grandes invenções mas não se deixando manipular pela força do próprio texto. Porque, apesar da sua qualidade, O Banqueiro Anarquista não é um texto dramático na sua essência. Não tem movimento, não tem história, não tem conflito nem desenlace e apresenta duas personagens quando, em verdade, só uma nos interessa. Daí que a abordagem tenha sido a de mostrar uma leitura e não a leitura deste texto, o que funciona em pleno. Pode haver quem não leia o texto com o humor com que é apresentado - onde me incluo - mas que ele existe, é inegável. Neste Banqueiro Anarquista, explora-se essa vertente e ganha-se a aposta por criar uma peça personalizada, pessoal e verdadeira. Há verdade quando o banqueiro explode em raiva, há verdade quando o banqueiro se vê sem argumentos, há verdade quando é apanhado em falso. Criou-se verdade teatral de um texto que é uma tese em prosa. A interpretação de Amândio Pinheiro é como o texto, porque é dela que nasce o texto. Humilde, sincera e verdadeira. Melhor ou pior, cada um julgará, mas a dele, o que cria um espectáculo com identidade para além do texto, com dramaturgia própria - o principal obstáculo com que se defrontava. Laura Nardi surge mais apagada, não por culpa dela, mas porque o texto não dá espaço nem margem de manobra para que a sua personagem exista enquanto tal. Quem puder que culpe Pessoa.
Título: O Banqueiro Anarquista
Autor: Fernando Pessoa
Encenação: Annalisa Bianchi e Virgínio Liberti
Elenco: Laura Nardi e Amândio Pinheiro

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O Ano do Pensamento Mágico



“Pode parecer que foi há muito tempo, mas não vai parecer quando vos acontecer a vocês”

A voz de Eunice Munoz continua a ressoar.

Na noite de 30 de Dezembro de 2003 Joan Didion e o seu marido John Dunne, entram em casa depois de visitar a filha, Quintana, internada na Unidade de Cuidados Intensivos com uma infecção generalizada. Sentam-se para jantar e, a meio de uma conversa, o silêncio. John morre. O Ano do Pensamento Mágico é um testemunho de vida. Real. Aconteceu. Nestas datas. Com estas pessoas. E foi escrito. E adaptado para Teatro. É difícil iniciar uma dissertação, presunçosa crítica, sobre esta obra, vivida e escrita por Joan Didion, neste teatro, protagonizado por Eunice Munoz, encenado por Diogo Infante. Difícil porque não se consegue dar uma cronologia lógica ao texto, nem em termos de importância, nem em termos de tempo, nem termos de nada.

Podemos recomeçar. Do início então. Ou então do fim. Porque nesta peça o tempo é intemporal. Embora se definam avanços e recuos cronológicos, a viagem é um contínuo em que tudo se mistura e a mistura se tempera. Mas há a chamada Perturbação do último Acontecimento – será que este último pode mudar o sentido de toda uma panóplia de acontecimentos? Ou será que conta mais que todos os outros? Quando acontecem, não há ordem cronológica para os momentos, passam inexoravelmente a compor a tela da vida, onde tudo se confunde, mas onde tudo tem se dispõe num lugar acessível à arquitectura de cada mente.

Joan Didion é uma jornalista, ensaísta, romancista, guionista e, mais recentemente, dramaturga norte-americana, a quem foi atribuído o National Book Award na categoria de não-ficção em 2005 pela obra O Ano do Pensamento Mágico. Porquê “Ano do pensamento mágico”? Didion escreveu para por fim ao pensamento mágico, à reconfortante ideia de se que vive para sempre. Escreveu para se resolver e poder dar sentido ao que lhe acontecera. Para poder continuar sem a amarga magia da redoma da ilusão. Antes agarrar-se ao que realmente existe. Porque a dor é inevitável e necessária. Mas permite a realidade. Permite exorcisar os “não sei” que tudo fazem morrer. E alcançar uma decisão. Viver.

Sinto-o também como uma declaração de Amor. Às vezes é preciso dizer adeus, deixar os mortos morrer. Mas é difícil quando se ama “mais do que apenas mais um dia”. O Teatro baseado em memórias reais (será que todas as peças de ficção terão também origem em reflexão pessoal?), nesta história trágica, torna-se mais intenso. Exige por parte dos actores uma grande busca de memória afectiva e há uma tendência para utilizar mais o que é de cada um, a própria experiência. Como se uma base verídica necessitasse de experiência verdadeira. Serão as lágrimas mais sentidas?

Eunice Munoz desmistifica o que de mito isto possa ter: “Há uma grande diferença em o texto não ser ficção... causa uma maior emoção. Sinto-o de outra maneira, é verdade”, mas também nos conta que é imprescindível estarmos apaixonados por qualquer texto. E afirma sem pudor que não chorou quando leu o texto pela primeira vez “As lágrimas chegam quando é preciso que cheguem, por isso é que sou actriz!”. Ainda assim confessa em lábios semi-cerrados que “dei comigo muitas vezes a necessitar de estar mais com o texto, e a fugir dele, como se às vezes fosse preciso ir ler outra coisa”.

O seu desempenho, se me permitem o apontamento, atinge-nos inesperadamente. Pede-nos mais do que estar ali sentados em silêncio.Quase nos ensina a suportar a dor sem nos deixarmos diminuir por uma auto-comiseração (essa volátil armadilha). Os monológos são perigosos, mas Eunice não desilude. É de olhar assertivo e penetrante, com uma atitude simples que reconhece “foi um grande presente que o Diogo (Infante) me deu”.

Não fosse uma gigante do Teatro Português, não fosse ter iniciado a sua carreira na representação aos cinco anos de idade na pequena companhia teatral ambulante da sua família, não fosse o ter pisado o palco do Teatro Dona Maria II (TNDM II) pela primeira vez há 68 anos com Amélia Rey-Colaço a quem chamaria “a mestra do seu coração”, não fosse a carreira, também, no cinema como protagonista Beatriz da Silva em Camões de Leitão de Barros,não fosse por ventura o convívio e trabalho próximo de grandes como Palmira Bastos, Raul de Carvalho, João Villaret, Maria Matos Raul Solnado e Ruy de Carvalho. E também poderíamos dissertar sobre as diversas distinções e homenagens a saber: a de melhor actriz em 1963 (e também em 1986), ou Prémio Voz, ou o Globo de Ouro de Mérito e Excelência em 2008, ou mesmo o grau de doutor honoris causa este ano.

Não fosse o dispensar qualquer apresentação ou rótulo, não fosse esta sublime e inantigível magnitud e poderíamos sentar-nos durante largas horas a falar e relembrar a carreira e a própria Eunice Munoz. Receio não ser necessário. Mas O Ano do Pensamento Mágico não é sobre Eunice Muñoz. Nem tão pouco é sobre o seu encenador Diogo Infante, que depois de director artístico do Teatro Maria Matos, a desempenhar actualmente e desde 2008 mesma função no TNDM II, dirige esta peça de forma humilde mas não menos brilhante. Escolheu o texto a pensar em Eunice Munoz, para a sua “re-estreia” neste teatro e embora não apresente a protagonista desta monólogo basta o seu olhar para quase se conseguir agarrar a admiração profunda que sente, pela Obra, mas principalmente pela Pessoa: “Eunice recomeça sempre do nada, da inquietação, da busca incessante do sublime que já é seu”.

Confessa que ao enfrentar este texto confrontou-se com as suas próprias perdas, dores e memórias, mas que a par da autora original do texto Joan Didion, também ele se resolve neste texto. Principalmente porque teve a oportunidade de partilhar este processo emocional com amigos, Miguel Seabra (responsável pelo desenho de luz), Catarina Amaro (na cenografia e figurino) e João Gil (pela música original). Principalmente quando o todo o espectáculo recriado de uma obra literária com base numa história verídica, por toda esta equipa, se funde numa só Eunice Muñoz. Diogo Infante, desarmado de falsos elogios ou representações apresenta a peça como uma viagem de sustentação interior e é com um sorriso sincero que confessa ter chorado muito, “mas não de dor, foi de prazer… de ver alguém trabalhar assim”. Mas não. Esta peça não é sobre nenhum deles. O Ano do Pensamento Mágico é sobre Joan Didion, mas não é sobre Joan Didion. É sobre as pessoas todas, sobre a experiência de qualquer vida humana. É sobre o inevitável de todos nós.
Título: O Ano do Pensamento Mágico
Autor: Joan Didion
Encenação: Diogo Infante
Elenco: Eunice Muñoz
(Texto de Marta Galrito)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Os Sorrisos do Destino


Quase todo o cinema português sofre uma critica atroz e cáustica - e muitas vezes certeira, acrescente-se. Ora porque se considera demasiado intelectualizado e se esgota nas suas referências e academismos, ora porque se apresenta como meramente comercial e vive de um marketing pós-televisivo agressivo. Como se o cinema português, mais do que qualquer outro, se dividisse em cinema comercial e cinema de autor, sem espaço para um cinema intermédio, que não viva das enchentes de público mas que também não as ostracize. Os Sorrisos do Destino, o último Fernando Lopes, é um exemplar interessante de como o cinema português pode ser de autor, interessante, com um cunho pessoal imenso, e mesmo assim ser atraente e cativante para o grande público. É certo que muitas das referências do cinema de Lopes passarão despercebidas à maioria das pessoas. Mas que interessa isso, se o filme passar na mesma, se o filme resulta mesmo sem as ligações a Bergman ou à própria cinematografia anterior de Lopes.
Porque no fundo, aparte toda a questão que costuma maravilhar parte da crítica, Os Sorrisos do Destino não passa de um bom, fresco e divertido filme sobre alguns dos temas de sempre do cinema - e até do cinema de Fernando Lopes. Rui Morrison e Ana Padrão interpretam um curioso casal em crise, até ao dia em que ele descobre, via sms, que ela tem um amante. Na saga das maiores vinganças passionais decide conhecer o outro homem. Mas, entretanto, acaba por iniciar uma relação de amizade com esse outro homem, interpretado por Milton Lopes. Deste triângulo, não apenas amoroso mas sempre relacional, nasce a força, o conflito e a tragicomédia deste filme aparentemente sóbrio mas com um sentido de humor completamente alienígena no panorama do cinema português. A personagem de Rui Morrison é de um construção que concilia, na perfeição, a naturalidade e a complexidade da personagem. É assim que, sem grande esforço, é capaz tanto da comédia simples de um gag ou de um quase-sketch como da seriedade de um homem amargurado e só. Milton Lopes é eficaz, refrescante e cativante sem perder a pureza a que o seu papel obrigava; e Ana Padrão encara com uma elegância bonita a personagem de esfinge que lhe coube, sabendo ser a mulher que o filme precisava, na mistura perfeita de sensualidade, enigma, realidade, conflituosidade e romantismo.
Percebem-se menos bem as personagens secundárias. Se é verdade que os papeis secundários por vezes secundam os principais pelo seu curto brilhantismo, a verdade é que em Os Sorrisos do Destino não há espaço para que isso aconteça. Rogério Samora e Alexandra Lencastre não têm tempo para mais que uma aparição, Cristovão Campos não tem por onde explorar a sua personagem e apenas Julião Sarmento ocupa o pouco espaço que tem com uma curiosa personagem que introduz as sms como motor de aproximação das personagens. Isto tudo porque o filme se centra demasiado, e bem, no triângulo principal, esquivando necessidade a tudo o resto. E ainda bem, porque é deste triângulo que nasce a comédia, o drama, os boleros, os cães que respondem a trechos de "Tristão e Isolda" ou os duelos de esgrima contra um espelho. Os Sorrisos do Destino pode não ser, como apregoam, dos melhores filmes de Fernando Lopes. Mas é dos mais sinceros na sua simplicidade que, por isso mesmo, resulta.
Título: Os Sorrisos do Destino
Realizador: Fernando Lopes
Elenco: Alexandra Lencastre, Rogério Samora, Teresa Tavares, Ana Padrão, Rui Morrison, Cristovão Campos, Milton Lopes e Julião Sarmento.
Portugal, 2009.
Nota: 7/10

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Tetro


A carreira de Francis Ford Coppola é, para além de intensamente estudada, especialmente interessante. A capacidade de, dez anos passados sobre o seu último filme, voltar em 2007 com Uma Segunda Juventude já atestava o amor pelo risco. Uma Segunda Juventude não seria o seu melhor filme - e quão difícil seria avaliar o seu melhor filme - mas era uma filme arrojado cuja principal característica era ambicionar demais. E, não contente, em 2009 aterra-nos em cima Tetro, uma obra completamente deslocada do que é o cinema hoje - e até do que é o cinema de Coppola. Em comum com Uma Segunda Juventude, acima de tudo, a ambição de conter em si o mais possível. O cinema enquanto vida como nunca. Em Tetro cabe tudo e há espaço para tudo. Espaço para a família, para o ciúme, para a memória, para o sonho, para a realidade, para a música, para o cinema, para a literatura, para o teatro, para a cor. Espantosa a construção narrativa que consegue conter tudo isto numa única história, a história de uma só família - e não é que não é a primeira vez que ele faz isto?: Um filme, uma família.
É claro que há alturas em que o onirismo perde o controlo - e aí se criam as excentricidades de algumas personagens - e momentos em que a narrativa não consegue ter pulso sobre tanta vida a jorrar de dentro de si - e assim se perde momentaneamente. Mas o resultado final não só é consistente, sem sequer nunca procurar isso, como é, acima de tudo belo. É beleza pura cada momento conseguido de Tetro. Como no amor pelo teatro - um café-teatro amador, puro e casto, onde tudo é caseiro e honesto - ou a obsessão pela literatura. Uma literatura que primeiro é vista como doença, como consumidora, como enlouquecedora, cruel e vil, mas que ao longo do filme se transforma numa literatura salvadora, redentora, onde se podem expurgar os males e encontrar soluções, aproximando pessoas e revelando segredos. E há o cinema, pano de fundo de tudo isto, quer no que Coppola sonha, quer no que as suas personagens sonham, quer no que Cappola nos influencia ou quer no que influencia Coppola.
Tudo isto se constrói num enovelamento simples mas denso onde se misturam memórias, sonhos, passado e presente - um pouco a lembrar por vezes a busca incessante de Proust pela memória mas com um toque de estranheza que só Borges saberia dar. O jogo de cor e luz é exemplificativo da arte do engenho, mas é o onirismo do conteúdo de alguns sonhos e de algumas memórias que mais impressionam num realizador que já não tem nada a provar mas que, ainda assim, se expõe, se entrega e se arrisca por pura paixão despudorada. Mesmo que tudo isto falhasse, e não falha, esta imagem de um Coppola aventureiro quando não precisava é belíssima. E assim temos uma viagem à Patagónia quase em género de Route 66, um festival de teatro onde se arrasam os críticos e as suas superficialidades pseudo-intelectualizadas, um par de irmãos que afinal o não são, ou um escritor que escreve em cifra e ao contrário. O melhor de tudo é chegar ao fim e não saber sobre o que é o filme. Se sobre uma família torturada por uma figura paternal austera e má, se sobre um triângulo de personagens que se descobrem e resolvem ou se sobre os sentimentos mais básicos que temos - ciúme, amor e ódio. Muito certamente é sobre cinema.
Título: Tetro
Realizador: Francis Ford Coppola
Elenco: Vincent Gallo, Maribel Verdú e Alden Ehrenreich.
E.U.A., Itália, Espanha e Argentina, 2009.
Nota: 8/10

sábado, 28 de novembro de 2009

Breve Sumário da História de Deus


No primeiro trabalho como director artístico, a escolha de Nuno Carinhas recai sobre Breve Sumário da História de Deus. Esta não é uma escolha inocente e, em si, resume muito do que se passa no TNSJ. Primeiro, é uma peça portuguesa, e demonstra uma intenção da parte da direcção artística de trazer mais dramaturgia portuguesa ao principal palco do Porto. Depois, mantém continuidade, lógica e expectável, com o passado recente do TNSJ ao trazer de novo uma temática religiosa. E, por último, escolhe um texto arrojado e difícil. Tudo o que um teatro nacional deve ter. Qualidade, politica de continuidade e arrojo. O desafio de Nuno Carinhas é grande porque o TNSJ tem-se assumido como um dos principais teatros do país. Mas o resultado, sem surpresa e até ver, são coincidentes. Breve Sumário da História de Deus é um espectáculo ímpar com uma qualidade que raríssimas casas em Portugal poderiam ostentar. Para além dessa qualidade, mantém uma óbvia paixão pela novidade que, nos teatros consagrados da capital, muitas vezes escasseia.
O texto de Gil Vicente nem sempre é fácil para o público. A sua linguagem quinhentista é-nos distante. Se nos diálogos corridos não encontramos problemas, alguns dos extensos monólogos com que Gil Vicente nos prendou nem sempre se revelam cativantes, se perceptíveis. Mas o texto de Gil Vicente é, antes de mais nada, teatro de Gil Vicente. Onde a crítica social se mascara na história religiosa (o já clássico "a rir se castigam os costumes"), contada com maior ou menor rigor bíblico. Breve História Sumário da História de Deus dispensa síntese porque o nome fala por si. De Adão a Abraão, de Moisés a Cristo, a história resumida de Deus conta-se através do homem, torturado pelo Tempo e pela Morte.
O melhor da encenação de Carinha é o conceito. A percepção clara de que este é um texto que caminha para uma misticidade. E é isso que Carinhas nos oferece. Uma experiência mística, quase como uma missa, no conceito mais primordial do termo. Uma reunião de crentes para uma celebração, exaltação e superação. Mas, em vez de deus, com o teatro. Se uma missa é uma encenação, a de Carinhas é-o magistralmente. A dificuldade do texto combate-se com o espanto visual - e repare-se o quão próximo isto é conceptualmente de uma missa da época, com os seus incompreensíveis textos em latim lidos numa cénica pomposidade. Cedo se percebe que a luz - muitas vezes usada metaforicamente como A Luz - tem papel crucial na criação da aura, de perto ajudada pela banda sonora assumidamente proto-épica. Toda a encenação nos enreda, nos prende, nos torna crentes. Não há um teatro de verdade, e o realismo não é para ali chamado. Há um chamamento religioso ao público. Para isso, tudo é trabalhado em uníssono. Não há protagonismos. Quando se precisa que um actor serpenteie em palco com uma maçã em palco isso surge. E quando dá jeito que a morte pareça realmente a morte, é o que acontece. O resultado é, antes de tudo, belo. Como se viesse de deus.
Título: Breve Sumário da História de Deus
Autor: Gil Vicente
Encenação: Nuno Carinhas
Elenco: Alberto Magassela, Alexandra Gabriel, António Durães, Daniel Pinto, Joana Carvalho, João Cardoso, João Castro, João Pedro Vaz, Jorge Mota, José Eduardo Silva, Lígia Roque, Mário Santos, Miguel Loureiro, Paulo Calatré, Paulo Freixinho, Pedro Almendra e Pedro Frias

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Hedda Gabler


Vamos tentar fazer isto com calma. Começamos como se de nada se tratasse. Actualmente em cena no Auditório Municipal Eunice Muñoz está Hedda Gabler, a brilhante peça do não menos brilhante Ibsen. O teatro de Ibsen, para além de refinadamente intelectualizado, é um teatro, acima de tudo, súbtil. É um teatro muito humano, de alguém atormentado e que, como tal, escreve sobre pessoas atormentadas. É sobre a actuação do homem, sobre os meandros mais escondidos que condicionam o seu agir, que se centra a obra de Ibsen. E, ao mesmo tempo, é um teatro muito social, não tanto na noção revolucionária do termo, mas enquanto análise das relações. Ibsen não se contenta com o estudo do comportamento, mas analisa o comportamento em si também. Fá-lo sem nunca cair nos riscos de um teatro afastado do seu público - as suas peças têm quase sempre personagens intelectuais mas não se esgotam nesse elogio da cultura. E, como se dizia no príncipio, é um teatro subtil, cujo sub-texto não está escondido mas não é gratuito. O que o teatro de Ibsen não é, sob risco de o fazer remexer-se algures, é uma mistura entre sitcom televisiva e teatro de revista.
A maior parte dos críticos adoraria uma Hedda Gabler como esta. Quase nada faz sentido e, no meio de tanto desastre, chega a tornar-se constrangedor. Mas, a dada altura, o desespero pelos danos numa peça tão boa é maior que o alívio da crítica fácil. Não há paninhos quentes que aqueçam esta verdade fria e simples. Esta Hedda Gabler não é a de Ibsen, é uma pálida imagem de um texto grandioso numa encenação miserável. Percebe-se que Celso Cleto pensa estar a fazer um grande trabalho, numa qualquer fantasia de trazer o teatro às pessoas. Nada mais errado quando se transforma uma peça central de Ibsen numa pantomima banal, onde as personagens são bonecos sem vida e a encenação vive da procura do riso fácil. Há opções falhada a todos os níveis da encenação. Quer no pormenor - luzes que mudam drasticamente com uma música que apela ao choro fácil, a lembrar o pior das piores telenovelas - quer nas noções básicas - as movimentações dos actores são do mais primário, básico e anti-natura, sempre a quer prender uma atenção desnecessária do público.
Podiamos culpar Celso Cleto de todos os males da peça - e se os há - mas seria injusto. Não para com ele - o que eventualmente também será - mas para os actores que em tanto contribuem para tamanha desgraça. Não descriminemos ninguém. Sofia Alves é uma boneca de porcelana sem noção da personagem que leva aos ombros, sem perceber que é mais importante na dinâmica condutora e esgota-se na sua frieza mal simulada que se vai libertanto, completamente a despropósito, ao longo da peça. Esperava-se mais de alguém que até já fez de gémea de si própria. Guilherme Filipe é, de facto, um actor dinâmico. Mas, quando se pede contenção, dá-nos exaltação desmedida. Vive toda a peça no seu registo hiperactivo. Logicamente, quando a peça caminha para o seu desfecho dramático, é incapaz de ser credível na sua dor, e limita-se a viver do gag fácil que o texto da personagem proporciona - o que, em boa verdade, faz com talento. Paulo Rocha de escritor amargurado e sofrido parece ter muito pouco, e há sempre mais charme para o público do que sofrimento interno. Vitor de Sousa, não sendo actor, é dos menos maus e peca apenas pelo reduzido reportório - temos sempre ideia de já ter visto aquilo em qualquer programa do Herman. De Ana Rocha - que se guardou para o fim com medo das palavras - há pouco a dizer porque pouco faz. Estar em palco, está. Mas representar, quase nunca. Interpretou à letra uma fala da peça de Ibsen - onde se diz da sua personagem que é estúpida - e limitou-se a esse conceito, com mais ou menos trabalho pessoal, tomando, como consequência, por estúpido o público. De Ana Rocha não se ouviu uma entoação que fizesse sentido, uma pausa na frase que fosse lógica ou uma expressão que não fosse uma ridicularização simplória para levar ao riso. Sobram, por exclusão, Elisa Lisboa - competente no papel de tia seca e conservadora - e Maria Dulce - exemplar e experiente, como sempre, na arte de manietar o riso do público com as pequenas personagens. A única valência desta deslocação seria o texto de Ibsen. Donde se retira que não vale mesmo a pena sair de casa: compre o livro e, se sentir falta de um intriga à portuguesa de riso fácil, assista a uma encenação semelhante em qualquer novela das 9.
Título: Hedda Gabler
Autor: Henrik Ibsen
Encenação: Celso Cleto
Elenco: Sofia Alves, Ana Rocha, Elisa Lisboa, Guilherme Filipe, Maria Dulce, Paulo Rocha e Vítor de Sousa

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O Que Se Leva Desta Vida

"Tão presa aos sentidos é a vivência humana"

Cinco Sentidos.
Olfacto. Audição. Visão. Tacto. Paladar.

Olfacto. Cheguei atrasada e sem jantar ao Teatro São Luiz, depois de uma hora a tentar estacionar o carro algures entre o Bairro Alto e o Chiado. Eram 21 e 25 e estava acordada desde as 6 da manhã. Atrasada, cansada, com sono, com fome e sem paciência. Entrei no Teatro e assola-me um cheiro diferente. Estavam a cozinhar! A escassos metros do meu desprevenido nariz, um palco transformado em cozinha. Uma azáfama, um restaurante, cozinheiros, empregados de mesa, gritos, vapor, um camera man de um lado para o lado. Dois chefs num brain-storming de gastronomia, palavrões, vida e paixões… a magicar um prato que soberbamente ficasse para a eternidade.
Visão. Parei dois segundos e pensei sozinha que possivelmente tinha falhado a porta da majestosa mas simples sala de espectáculos do São Luiz. Mas não resisti a sentar-me para assistir a esta quase provocação. Uma provocação dos sentidos.
O que os meus olhos atentos podiam admirar era Gonçalo Waddington e Tiago Rodrigues, actores e personagens (ficção que se confunde com realidade) no meio de uma equipa de cozinheiros reais (ficção que se confunde com realidade). O Restaurante é o Cópia em Lisboa que surge de um projecto divergente depois de um estágio comum com o chefe Martin Berasategui e que, após caminhos diferentes a deambular pelo mundo da cozinha e da aprendizagem converge neste projecto de liberdade de criação dos dois cozinheiros. E a liberdade é o preço mais alto a pagar n'O Que Se Leva Desta Vida. Implica arriscar e sofrer.
Tacto. Fechei os olhos para potenciar o que o olfacto provocava em mim. Mas rapidamente os abri para tentar chegar ao palco. Porque o olhar é o rei dos sentidos. Mas não chega. Sentidos que emanam sensações. Sensações que nos levam a emoções. Queremos tocar e sentir a textura, ouvir o estalar da espuma. Saborear o que imaginamos iguaria. Tudo isto apenas ali de uma cadeira de teatro.
Audição. O que os ouvidos podem apreciar é o confronto das duas formas distintas de viver a Cozinha, a Arte e o Prazer. Gonçalo perde-se nas origens e na raça da matéria-prima. Criativo mas ligando o conteúdo à cultura do produto, que se experimenta num resultado final genuíno. Tiago, apologista da forma, fascinado por todo um caminho a percorrer em que a meta do prazer é a posteridade, num resultado tecnoemocional.
Paladar. A livre comunicação, quase improviso, repugna (o Teatro é real, o pormenor pode chocar) e seduz. E depois de todos os sentidos serem testados, quase conseguimos gozar demorada e voluptuosamente o sabor dos crocantes de alheira ou do risotto de cogumelos que acompanha o magret de pato.
No fundo, o que é a provocação se não o confronto destas dois pensamentos distintos, algures entre as origens e o futuro, em que o caminho se constrói no deleite do prazer de cada momento?
É isso que se leva desta peça… uma fusão dos 5 sentidos. Vontade de experimentar. No fundo trazemos para a vida, que nunca deixou de o ser, um pouco do Teatro. É quase instintivo. O mais importante é não viver dentro de uma caixa. Nem da vanguarda, nem do tradicionalismo. A meta é o prazer, e o prazer não é uma meta. É um caminho de momentos que se vai criando.
E quando saírem do Teatro, não se contentem com menos do que uma ceia única que vos aguce a imaginação, sem nunca deixar de sentir o real.
Porque se querem saber história, horário, preços, disponibilidade e ficha técnica têm sempre o site: http://www.teatrosaoluiz.pt/ (é absolutamente obrigatório ler as entrevistas), ou passem na Rua António Maria Cardoso, nº38. Tel: 213 257 640. E Sintam por vocês.
Título: O que se leva desta vida
Autores: Gonçalo Waddington, João Canijo e Tiago Rodrigues
Elenco e encenação: Gonçalo Waddington e Tiago Rodrigues
Dramaturgia: João Canijo
(Texto por Marta Galrito)

sábado, 14 de novembro de 2009

Substitutos


O bom da ficção científica é a sua capacidade de antever. A imaginação e a criatividade à deriva a chegar a resultados aparentemente inverosímeis mas, enquanto manifestação da direcção de um determinado tempo, uma proto-realidade. É certo que a parte metafórica do género também tem algum interesse. Qualquer filme de ficção científica que se preze pega na realidade do seu tempo e mostra-a de novo à luz da concepção futurista que o seu autor inventou. O que quase nunca interessa e não são mais que fait-divers são as barulhentas sequências de combate, perseguição ou qualquer outro frenesim espalhafatoso que mais não serve do que para agradar aos mais desesperados por acção mentalmente atordoadora mas, enquanto entretenimento, eficaz. Daí que o filme de Mostow esteja condenado à partida. De antevisão temos zero. A história só fala do que já conhecemos e nada novo mostra - entre Matrix, I Robot e uma passeio na net pelo Second Life, está tudo visto. Funciona enquanto crítica social a um civilização que se deixou manietar pelo maravilhamento tecnológico, lá isso é verdade. Mas, sejamos sinceros, de heroís que nos salvassem do demónio tecnológico, nos últimos anos, temos estado bem servidos. Era preciso um bocado mais qualquer coisa do que vir dizer, outra vez, como se não soubéssemos já, que as máquinas não são boazinhas e, mais tarde ou mais cedo, perante elas pereceremos. Fisica ou emocionalmente.
Também é verdade que há um ou outro ponto em que Substitutos se diferencia da panóplia costumeira de ficção cientifica "cuidado com a tecnologia". Especialmente quando foca o filme numa verdadeira rede social de avatares. Tudo o que Mostow tinha para dizer, se é que era ele que tinha isto a dizer, está dito aí, é bonito, mas cedo acaba. Depois, resta um desfile de tragédias. A música melodramática com que filma longamente a cara de Bruce Willis para percebermos que o seu filho morreu é desnecessária e incomodativa, para além de despropositada. A princípio percebemos a opção por substitutos abrilhantados e arrobotizados, mas com o avançar do filme a paciência perde-se rápido. Mais, alguém tem de parar um pouco Hollywood e avisar que a reviravolta, o twist, só funciona nestes filmes se, em pelo menos um, ela não for feita. E há ainda Bruce Willis. Um homem que, tenho a convicção plena, passa o dia sentado à espera que lhe liguem para, uma vez mais, fazer o papel de polícia bom que vai contra as regras e acaba a salvar o mundo sozinho. Parece íngrato para um homem só, especialmente quando acontece repetidamente, mas alguém tem de o fazer. Sorte a dele que às vezes ainda vão chatear o Will Smith.
Título: Substitutos
Realizador: Jonathan Mostow
Elenco: Bruce Willis, Ving Rhames e Rosamund Pike .
E.U.A., 2009.
Nota: 5/10

domingo, 8 de novembro de 2009

Maldito United


Quando o universo do cinema se cruza com o do futebol, o resultado é quase sempre desastroso. As opções habituais passam por explorar o jogo enquanto jogo - camâras focadas nos pés, bolas a rolar, fintas e golos - ou o jogo enquanto espectáculo através das suas vedetas. A primeira opção dá origem a entretenimento barato com aspecto de filme caseiro e os truques soam quase sempre a falso. A segunda opção não passa muito para além do filme teenager - ou na exploração da vedeta ou na ascenção melodramática do pobre jogador. Existem alguns exemplos raros - como o recente filme sobre Zidane - mas o grosso da história desaprova o casamento entre os dois.
Maldito United, do argumentista Peter Morgan, é uma óptima contradição disto mesmo. Sendo um filme mainstream, é inteligente na forma como aborda o jogo. A razão porque resulta está longe de ser o enredo, Michael Sheen ou Tom Hooper - embora qualquer um destes pontos ajude. É bem mais simples do que isso. É que Maldito United é um filme sobre pessoas, não sobre o jogo. A pessoa em causa aqui é Brian Clough, reputadíssimo treinador britânico , com uma grande falha no seu currículo. É nesta falha, a fugaz passagem de 44 dias pelo Leed United, que se centra o filme de Hooper. Há futebol neste filme, mas de uma forma estranha. Não se mostra o jogo, a não ser de forma extemporânea. Mas ele está sempre presente. Como pano de fundo, como cenário. Mas, mais do que isso, na própria respiração das personagens, que vivem aquele desporto. E essa é talvez a melhor forma de homenagear o desporto no cinema - coisa que realizadores ao longo de décadas parecem não ter percebido.
Mas Maldito United é também um filme que poderia não ter futebol em lado nenhum. Porque é Brian Clough que seguimos, e apesar de a sua relação com o futebol ser interessante, é a sua visão de si mesmo que enche o ecrã. Clough é um homem ambicioso que se deixa cegar por uma sede de vingança e por uma ambição desmedida que, como quase sempre acontece e dito em português corrente, lhe acabaram por tirar o tapete debaixo dos pés. O futebol tem essa vantagem - e basta ouvir um qualquer flashinterview de um jogo da Liga Vitalis para perceber. A passagem de bestial a besta é instantânea. O trabalho de Michael Sheen a construir um Clough bestial e uma Clough besta é soberbo. É verdade que tudo isto é filmado em formato mini série britânica de luxo, mas nem por isso deixa de ser menos verdade o fundamental sobre Maldito United. Há vida neste filme.
Título: Maldito United
Realizador: Tom Hooper
Elenco: Michael Sheen, Jim Broadbent, Bill Bradshaw
Reino Unido, 2009.
Nota: 7/10

sábado, 24 de outubro de 2009

Ifigénia na Taurida


Ifigénia na Táurida, a peça de Goethe em cena na Cornucópia até 1 de Novembro, é uma obra exemplar na forma como sintetiza a época em que é feita e, num âmbito diferente, a companhia que agora a reproduz. Do mais notório romantismo germânico chega-nos a história de Ifigénia, filha de Agamémnon e Clitemnestra, exilada na ilha de Táurida onde vive uma reclusão forçada pelo destino - o seu e o da sua família. É este mesmo destino que traz o seu irmão a esta ilha depois de ter morto a mãe para vingar o pai - posto nesta simplicidade, o caso parece a abertura de um telejornal, mas isso é apenas a prova de que a humanidade não mudou assim tanto nestes últimos milhares de anos. A história de Ifigénia, nas mãos de Goethe, torna-se um case-study do romantismo da altura e, mais, prova-nos como o casamento entre o classicismo e o romantismo, pelo menos no que à dramaturgia diz respeito, é simples e eficaz. Do romantismo, Goethe traz-nos a visão centralizada do mundo. Cada um chora as suas dores. Ifigénia chora a distância da pátria, Orestes chora a sua vergonha e o rei Toas, não chorando, lamenta-se de não possuir Ifigénia. A razão porque Grécia Antiga e romantismo se casam na perfeição torna-se óbvia. Ambos nos remetem para um universo de paixões dramáticas, de épicos amores fraternos, de assassinatos passionais e de emoções extremas. Não há comedimento nem contenção, a nível pessoal. Talvez por isso, aqui mais do que nunca, se misturem deuses, homem e destino.
Esta é a forma do texto de Goethe, um romântico inveterado, no lado bom do termo. O drama de Ifigénia é assim o mote. Na forma, e na expressão desse mesmo drama, Goethe explora esse seu lado romântico. E, de alguma forma, o seu lado datado, preso a um contexto literário da sua época. Mas há uma modernidade, ou antes uma universalidade, no seu texto. Em primeiro, na forma como entende a mulher. Uma das cenas finais é ilustrativa. Enquanto dois homens não se entendem e erguem as suas espadas - mais metafóricas que reais -, é à mulher que cabe ter a sensibilidade do entendimento, o lado não bélico da vida. Ifigénia, aquela que foi salva pela deusa do sacrifício, a sacerdotisa, a sábia, a que sofre mas salva. Esta é a mulher na peça de Goethe. A mulher no meio de homens, beligerantes, errantes, sofredores mas desejosos de imprimir o mesmo sofrimento no outro. Também o papel dos deuses é interessante em Goethe. Mais do que o próprio fado. É a ideia de que homens e deuses não se devem imiscuir. Assim começa a desgraça da família de Ifigénia. Quando o seu antepassado se mistura com os deuses. Como se homem e deus fossem realidades separadas, necessariamente separadas, e cuja mistura é necessariamente prejudicial. Para o homem, obviamente - interessante como esta ideia de Goethe se adequa à discussão que hoje se levanta em torno do Caim de Saramago.
Mas esta é a Ifigénia da Cornucópia. Segundo Goethe, é certo. Mas recriada por Frederico Lourenço, imaginada por Luis Miguel Cintra e interpretada pela regressada Beatriz Batarda. E, curiosamente, a leitura da peça é a mesma. Também a Ifigénia na Táurida, se vista à luza da Cornucópia, é sintomática. Esta recriação de Cintra é paradigmática da forma de interpretar daquela companhia. Por um lado, a principal aposta é na simplicidade. No despojamento, no nu cénico, na pobreza visual. Como se dizendo, concentrem-se no texto, não se distraiam. E, ao concentrar-se no texto, explora o seu romantismo ao máximo. A nível das personagens e do trabalho de actor, acima de tudo na Ifigénia de Batarda e no Orestes de Paulo Moura Lopes - um concorrente de peso na competição da colocação de voz, onde Cintra é campeão. Nestas mesmas personagens nota-se ainda a influência do teatro clássico, de onde no fundo bebe Goethe. O peso da palavra e da voz por oposição ao papel do corpo. Há concessões que se fazem à conta destas escolhas, logicamente. E até o próprio drama, o que mais move o texto de Goethe, tarda a chegar em verdade. Mas quando chega, e que chegue sem que seja preciso praticamente nada para além do texto, a peça concretiza-se. O teatro nem sempre é movimento. Mas é sempre beleza.
Título: Ifigénia na Táurida
Autor: Johann Wolfgang von Goethe
Recriação poética: Frederico Lourenço
Encenação: Luis Miguel Cintra
Cenário e Figurinos: Cristina Reis
Desenho de luz: Daniel Worm D’Assumpção
Elenco: Beatriz Batarda, José Manuel Mendes, Luis Miguel Cintra, Paulo Moura Lopes e Vítor de Andrade.

domingo, 11 de outubro de 2009

Abraços Desfeitos


A carreira de Almodóvar tornou-se um problema para o próprio. Todos citam dois ou três nomes como os seus grandes títulos, fala-se de algumas obras chave, mas é o somatório da sua carreira que construiu o monstro que é, agora, cada um dos seus filmes. Um novo filme de Scorsese não tem de ser especialmente inovador, basta-lhe uma certa pinta e a lembrança do antigamente. A um novo Woody Allen, para agradar à quase generalidade dos críticos, pede-se-lhe apenas que torneie a sua ansiedade num qualquer malabarismo bem pensado - uma bola de ténis numa rede, quiçá. A Almodóvar, exige-se tudo. A superação emocional a cada filme. Exige-se-lhe a originalidade da estética, a densidade emocional que ele confere às suas personagens e ao objecto final, e uma narrativa que nos prenda. Mas, às vezes, Almodóvar pode querer apenas fazer um filme.
O pacote de Suporte Básico de Almodóvar, chamemos-lhe assim, está lá todo. O poder das mulheres no (seu) cinema, Penélope Cruz filmada como só ele sabe, a homenagem ao cinema, a homenagem à cor, a metáfora e a narrativa à procura do passado. Mas, conceda-se a mão à palmatória, já o vimos mais eufórico. Já o vimos com uma mensagem. Noutros filmes - Má Educação, Tudo Sobre a Minha Mãe - pressentia-se a urgência nalgo para dizer. Noutros ainda, especialmente os primeiros, pressentia-se a necessidade de afirmação de um cinema de autor muito próprio, marcado por regras, por diálogos, por cores, por dinâmicas e por personagens-tipo muito próprias. Não só é normal que isto nem sempre surja, como é normal que a Almodóvar isto nem sempre apeteça. Daí que a toada crítica a abrir o caminho a Abraços Desfeitos como um filme menor - quem sabe a antever um percurso alleniano à coisa - seja claramente exagerada. Às vezes um filme, por mais belo, é apenas um filme.
Em Abraços Desfeitos, Almodóvar volta a algumas das suas mais antigas obessões. Duas são especialmente bem conseguidas - mesmo que o tenham sido ainda melhor noutros filmes seus. O passado como influência profunda do presente, ou a forma como o presente se percebe todo no passado, é recorrente na sua obra. A cada filme que passa, há uma obsessão contínua de começar no presente algo que se configura como incompleto e que só o passado pode explicar. Almodóvar podia fazer o filme no ontem ou centrar o filme no hoje. Mas é a consequência do primeiro sobre o segundo, mais do que a confrontação ou a necessidade narrativa, que verdadeiramente interessam. Outra antiga, e constante obsessão de Almodóvar, é o cinema. Aqui revisita-se também a si mesmo. Há mais Almodóvar naquela noção quase pirandelliana de filme dentro do filme do que no próprio filme. O ritmo do filme de Mateo é o de Almodóvar. Que o filme acabe com a reconstituição de um filme assim é merecido e sintomático.
Título: Abraços Desfeitos
Realizador: Pedro Almodóvar
Elenco: Penélope Cruz, Rubén Ochandiano, Blanca Portillo, Ángela Molina, Alejo Sauras e Lola Dueñas.
Espanha, 2009.
Nota: 7/10

Assalto ao Metro 123


Começa tudo no trailer. Ver o trailer de Assalto ao Metro 123 é mais do que ficar com uma ideia do filme, espicaçar a curiosidade ou sequer ler a sinopse. É como pedir a um amigo para nos contar o filme. Uma selecção do que a memória achou mais importante mas, no fundo, um resumo bem feito e aprumado da história em si. De onde se tira que ver Assalto ao Metro 123 depois de ver o trailer sugere quase a mesma sensação que ler os Lusíadas depois de passar os olhos nos resumos da Europa-América - com a devida diferença e um antecipado e sincero pedido de desculpa aos Lusíadas. Apartir do momento em que vemos o trailer, sabemos que ver o filme vai ser uma má ideia mas, bem intencionados, insistimos. A primeira ideia que nos vem à mente depois de o ver, é perder as boas intenções. A segunda, que já vimos esta história uma e outra e outra e ainda uma outra vez. Não há nada de novo nem de interessante em Assalto ao Metro 123. Nem a história, remake de um filme dos anos 70.
Pior, não é só o filme que não traz nada de novo. Tony Scott continua com o complexo de querer fazer o mesmo que o irmão mais velho e quer brincar aos filmes. O facto de não saber como, pouco lhe importa e é como aquela criança que vem jogar com os mais velhos. Acaba sempre por estragar o jogo. Scott insiste que o cinema é feito de bons e de maus, de tiroteios e de pancadaria, de um ritmo desenfriado e louco que não deixa ninguém pensar. Nem sequer ele próprio. E depois há ainda Denzel Washington, uma das pessoas que mais vezes salvou o mundo - a par de Will Smith. É certo que Denzel Washington é competente e certinho, e que a barriga extra lhe confere um tom mais paternalista e menos aventureiro. Mas vê-lo naquele papel típico é, há um bom par de anos, a garantia aborrecida de que o filme acaba como prevíramos. Travolta embarca num canastrão de serviço um pouco esforçado de mais, mas que claramente dá para o gasto com aquele piloto automático de vilão cruel mas revoltado. Juntam-se mais alguns nomes como Gandolfini e Turturro e tem-se a certeza que noutras mãos, o material podia ser trabalhado a sério. Assim é para passar na TVI depois das novelas.
Título: Assalto ao Metro 123
Realizador: Tony Scott
Elenco: Denzel Washington, John Travolta, John Turturro, James Gandolfini e Luiz Gusman
E.U.A., 2009.
Nota: 3/10

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Caçadores de Vampiras Lésbicas


Há uma grande diferença entre um filme despretensioso e um filme sem pretensão a nada. Ser despretensioso pode ser uma qualidade, mas não querer dizer, fazer ou mostrar rigorosamente nada com um filme, não. Esta é a diferença que existe entre o cinema e este Caçadores de Vampiras Lésbicas. Repare-se, na teoria este podia facilmente ser um filme de piada exploitation e com referências várias a piscar o olho ao kitsch. Desde O Ataque dos Tomates Assassinos que nenhum título se prestava tanto a isso. Até a sinopse, se bem feita e ocultar um outro pormenor, para isso contribui. E, vá, com algum esforço, concede-se que o pormenor de Caçadores de Vampiras Lésbicas ser um filme totalmente feito apartir do título lhe dá uma certa pinta. Mas esse é exactamente o problema deste filme (o substantivo queima na garganta com medo de se atribui ao objecto em causa). Não quer ser um filme, quer ter pinta. Para isso, acha que juntar três ou quatro mulheres de avantajados seios a mordiscar-se enquanto brincam aos vampiros chega. Isso mais umas piadas de caserna que os Malucos do Riso já tornaram propriedade pública e uma historieta de vampiros - que tanto podia ser de vampiros como de ordenhadores de vacas.
Olhar de novo para Ataque dos Tomates Assassinos é sintomático. O filme é sincero, genuíno e fala-nos directamente da sua estupidez. Aqui não. A punchline não existe. Não entramos na comédia ciné-satírica do género de Scary Movie, nem no filme de terror adolescente, nem na comédia britânica erótica. O humor é um best of do pior entre Malucos do Riso e Benny Hill. E nem a parte lésbica é levada a séria, sendo o filme um hino aos clichés heterossexuais. A única coisa válida neste filme são mesmo as vampiras. Mas de mulheres boas está a net cheia. Nada, portanto. A maioria dos filmes que se tornam no culto a que Caçadores de Vampiras Lésbicas ambicionava são feitos não para a exposição dos seus autores mas pela extravagância dos mesmos. Para estes caçadores: havia tantas maneiras mais baratas de conseguir ter sucesso entre as mulheres.
Título: Caçadores de Vampiras Lésbicas
Realizador: Phil Claydon
Elenco: Silvia Colloca, Margarita Hall, Matthew Horne e Sianad Gregory.
Reino Unido, 2009.
Nota: 1/10

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Sacanas sem Lei


Há, hoje, poucos cineastas que consigam combinar tão bem qualidade com consistência. A obra de Tarantino é toda ela pautada por uma consistência na forma e uma regularidade na qualidade. Mesmo tendo Pulp Fiction granjeado o título de filme de culto, é difícil estratificar a sua obra, quer pela positiva quer pela negativa. Nesse sentido, Sacanas sem Lei rege-se pelas mesmas regras de filmes como Pulp Fiction, Kill Bill ou Death Proof. Acontece em vários aspectos - nos diálogos, na presença do onírico e do surreal, no ritmo - mas o mais notório, o que se torna o centro deste filme, é a paixão pelo cinema. Tarantino tornou-se um compositor único que cunha cada obra com pormenores muito pessoais. Podemos facilmente ver um filme de Tarantino, não o sabendo, e adivinhar o autor. Mas, para além da pessoalidade que empresta às suas obras, é o seu absoluto amor pelo cinema que mais salta à vista. Mais que amor, paixão. É evidente também o profundo conhecedor que é, mas é a vontade de filmar que mais impressiona.
Saltar daí para Sacanas sem Lei é quase lógico. Toda a obra de Tarantino tem sido uma enorme homenagem ao cinema. A sua mente acumulou os milhares de filmes que viu e estudou e cospe-nos agora aqueles que achou merecerem homenagem. É um exercício complicado descobrir referências cinematográficas nos seus vários filmes, e em especial neste último. Mas diverte ainda mais reparar como o seu gosto é eclético e como as suas obras são universais. Até o seu bom cinema lembra por vezes o mau cinema de outros. A mudança de linguagem num diálogo e o rigor absurdo até com o sotaque lembram o tropeção clássico dos filmes de guerra passados em 2 ou 3 países mas onde toda a gente fala a mesma lingua. Mas não só esta homenagem não se baseia em pormenores como não é algo intelectualizado. Sacanas sem Lei é filme de antologia na obra de Tarantino porque nele inclui pedaços de todos os seus filmes (o nome de Hugo Stirling em letras garrafais lembra a estética de Death Proof, os diálogos são à Pulp Fiction e as cenas sanguinárias têm a irrealidade do sangue esguichado em Kill Billq) e porque simplifica este amor ao cinema ao máximo. É sobre o poder do cinema que falamos. Sobre como o cinema é a salvação do homem. Com Tarantino, o fim da guerra dá-se no cinema, a ficcionada morte de Hitler dá-se pelo cinema, no cinema. No cinema, enquanto espaço físico, e pelo cinema, enquanto filme e fita. É o amor pelo cinema de bobine, o amor pelas salas de cinema, o amor pelo filme. No fim, o cinema salva o mundo.

Título: Sacanas sem Lei
Realizador: Quentin Tarantino
Elenco: Brad Pitt, Mike Myers, Christoph Waltz, Samm Levine, Eli Roth, Diane Kruger e Samuel L. Jackson (voz).
E.U.A., 2009.
Nota: 8/10

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Séraphine


A vida de Séraphine Louis, conhecida por Séraphine de Senlis, dava um filme. E um livro. Aparentemente, a polémica em curso é que o livro e o filme não são assim tão pouco aparentados e, tendo em conta que Séraphine foi dos filme mais vistos do ano, suspeita-se que a parte envolvida no livro vá atrás dos dividendos. Quem ligava pouco a dinheiro era Séraphine, mulher simples e dedicada à lavagem da roupa alheia. Nos poucos tempos livres, utilizava flores, sangue e azeite para produzir tintas e com estas pintar os quadros. Mais tarde haveria de incluir o estilo naif. Alheias a isto tudo eram não só a própria Séraphine mas também os aldeões que partilhavam a sua vida, desde a sua patroa até ao dono da drogaria. Todos menos Uhde, um marchand alemão que se vê a alugar uma casa cuja empregada era não mais que Séraphine. Todo o filme, esta breve sinopse e o mais que se segue, não vai muito além da biografia de Séraphine. A sua pintura, a sua loucura e o consequente internamento e a sua relação com Uhde e a família deste. A história não é difícl de contar.
Não espanta por isso que Provost o tenha sabido fazer com académico e regular desempenho. A parte do filme que se baseia estrictamente nesta biografia - e não é pouca - passa por isso com naturalidade, não incomoda ninguém, mas também não entusiasma. Tem a feliz particularidade de saber fugir do telefilme - o maior risco nisto das adaptações da vida dos artistas e dos famosos. Depois há a costumeira e necessária integração histórico-coisa, ou não fosse a vida de Séraphine atravessada por períodos cruciais da história mundial. A I Guerra passa de raspão, o crash da bolsa de 29 acerta-lhe mais em cheio quando não pode comprar o vestido para a dama de honor. Tudo bem, aceita-se e a função está cumprida - ainda que a própria Séraphine nunca dê muito bem por isto passar. Depois, na tradição habitual da biografia cinematográfica, faltava ainda a crítica social. Ela está lá. lembra um mau Proust, mas faz o essencial - a diferença entre a burguesia armada em artista e a artista desaburguesada. Há ainda tempo, já a caminho do fim (e caminhar para o fim, neste filme, não é coisa fácil) para o inevitável momento de loucura, transversal ao talento e muito presente na vida da dita Séraphine. De momento, nada mais me ocorre de obrigatório no género mas, se o houver, estou certo que Provost incluiu.
Séraphine é uma bonita e até bela homenagem à própria. E, acima disso, à sua pintura. É aqui que o filme se ultrapassa. Quando se aproveita das pinturas da sua musa e as deixa trabalhar em cinema. Talvez guiado por esta inspiração - ou, quem sabe, talvez oiça também umas vozes do além - Provost é capaz por vezes do belo. Na paisagem sobretudo, consequência natural da vida e da pintura de Séraphine. Se, em vez de ter sucumbido à necessidade aparente de acorrer a todos os clichés do género, atendesse mais à pintura de Séraphine ou à sua relação com a cor, este podia ser um outro filme. Assim é só mais uma homenagem engraçada e meia bela a um bom artista, que se perde e nos perde no meio da sua duração exagerada - não em tempo, mas em lentidão.
Título: Séraphine
Realizador: Martin Provost
Elenco: Yolande Moreau, Ulrich Tukur e Anne Bennent
França, 2008.
Nota: 6/10

domingo, 27 de setembro de 2009

Distrito 9


O que se espera de um filme de ficção cientifica é que caminhe na linha ténue onde se encontra o falso entretenimento com a metáfora, normalmente social. Falso entretenimento porque apenas na aparência a ficção cientifica é um género de entretenimento. Não é. É um espaço de criatividade e de imaginação, mas que quase sempre teve um grande componente de reflexão sobre o seu tempo. Dos únicos espaços onde a capacidade de criar apartir de um cenário não tem limites, porque se rege por diferentes regras. O problema é que o componente da reflexão tem vindo a perder-se. O que parece interessar à ficção cientifica de hoje é que um extra-terrestre de ar agressivo queira invadir o planeta para criar cenários bélicos. Depois juntamos um actor-heroí-vedeta, atafulhamos tudo de fantásticas cenas de pancadaria, polimos com espectaculares efeitos especiais e acabamos em grande, com o heroí a casa retornado após salvar, uma vez mais o mundo. O mundo já foi salvo, aparentemente, algumas largas centenas de vezes. E, contudo, ainda aqui estamos, no mesmo sítio. O problema desta ficção cientifica espectáculo é que raramente corre atrás de alguma coisa. Simplesmente corre - e quase sempre corre, literalmente, porque o ritmo é demasiado frenético para sequer deixar pensar. Depois do filme feito e colado, alguma espécie de conotação com a sociedade se há-de aplicar. Desde o 11 de Setembro, tudo é mais fácil. Qualquer alien é um terrorista e metáfora desenrola-se por aí fora nesse sentido nas várias entrevistas propagandistas que antecedem o lançamento do filme.
Daí que seja refrescante depararmo-nos com um filme do género que foi pensado antes de ser feito. Que foi feito porque se tinha algo a dizer e não só porque havia dinheiro a ser ganho. Com produção de Peter Jackson, Distrito 9 é a história de um grupo de extraterrestres que se vêem atracados em Joanesburgo e depois segregados pela população, até acabarem num bairro marginal, o Distrito 9. Tratados desumanamente, por não serem considerados humanos, estes seres são deixados a viver nas condições mais degradantes, numa zona que evolui rapidamente para a pobreza, a decadência, a prostituição, a violência e o isolamento. Até que um homem, um funcionário do sistema, se vê envolvido numa mutação que o torna meio humano meio alien. Ficção aparte, o que aqui interessa, após isto - e isto, o até agora, é o melhor do filme - é a ruptura deste homem com o seu mundo anterior, a forma como este o persegue e a denúncia das associações internacionais como sedes de corrupção. Distrito 9 é ao mesmo tempo uma reflexão sobre o racismo e sobre o Apartheid, não sendo a isso alheio o facto de se localizar em Joanesburgo e ser filmado por um natural da África do Sul. Mas é também mais que isso. É um filme sobre a segregação social, sobre o arranjamento urbano de classes e de raças que leva, indubitavelmente, a um efeito cumulatório de violência, exploração e pobreza. Até aqui é a parte em que Distrito 9 é um bom filme, na teoria. Na prática, nada resulta muito bem. O arranjo engraçado em forma de documentário é original mas não esconde as lacunas do filme. A personagem principal não convence nem como humano nem como mutante, os aliens idem, há uma qualquer contradição entre a seriedade do filme e um lado naif que por vezes pontua e, como se não bastasse, acabamos o filme com a sensação de ter entrado na sala errada e ver uma qualquer versão de Transformers. O problema da ficção cientifica é quando esquece a ciência, não se agarra à ficção e fica convencida que é um filme de acção.
Título: Distrito 9
Realizador: Neill Blomkamp
Elenco: Jason Cope, Robert Hobbs, William Allen Young e Sharlto Copley.
E.U.A. e Nova Zelândia, 2009.
Nota: 5/10